A história é antiga. No reino da bicharada aconteceu imenso alarido, por arrulhar alvissareiro de pombas. –Vai haver uma festa no céu! E todos os bichos estão convidados!
Desnecessário descrever a grande alegria. O sapo, por exemplo, abriu a bocarra e gargarejou: – Obá!
Todavia, como todos que querem o céu só para si, o coaxar cururu enciumou o tamanduá, que sem dar bandeira queria impedir o pobre sapo de degustar as formigas celestes.
Ouviu-se então o chiado inusitado do tamanduá: – Só entra quem tem boca pequena!
E o sapo imitando um biquinho com a boca graúda, reclamou: – Que injustiça de Deus!
Mas Deus, criador de tudo ou suprema criatura do pensar humano, não podia fazer segregação, sobretudo de um anuro sem maldade, imensa fealdade em desminto e esconjuro.
Não! O sapo não só fora convidado, como podia levar sua jia. O convite fora amplo geral e irrestrito.
E as portas do céu foram abertas.
A chegada não foi difícil para quem tinha asas ali ascendendo por arte e condução própria.
Aos pedestres e rastejantes, rampas e escadas foram erguidas, tudo colocado à disposição plena de melhor preferência.
Até uma chuva invertida aconteceu para que toda a fauna aquífera pudesse alcançar os píncaros celestes sem traumas, impedimentos ou entalações.
Dir-se-ia que houve uma inusitada e nunca imaginada inversão dos postulados da hidráulica, da mecânica dos fluidos e dos fenômenos de transportes, impensados por Prandtl, Bernoulli, Reynolds, Hagen-Poiseuille, até para os fluidos newtonianos.
E ainda, toda a ciência humana foi revogada, porque nos contos dos milagres de Deus, Sua regra oscila em conflito com a inexorabilidade de Sua própria razão, afinal Ele pode tudo, até contradizer-Se, o que é terrível!
Terribilidade, por funesta e má, porque ao sabor da interpretação divina, todos nós julgamos saber melhor o Seu pensar, missão e palavra.
Quem vai para o céu? Eis a grande pergunta que acompanha os tolos, os sabidos e os poucos sábios. Igual à festa no céu, no conto infantil da bicharada.
E neste questionar bisonho, por enfadonho, medonho e tristonho, ousamos julgar, condenar e salvar, em danações eternas de peçonhas infinitas, nas sempiternas e avernas maldições, quando a mensagem maior das religiões é a bondade ilimitada de Deus, Sua ternura e mansidão, incomensuráveis e incomparáveis com a miserabilidade humana, em ousadia de Prometeu, basbaquice de Adão e bisbilhotice de Pandora; três heróis revéis, mal julgados e pior condenados.
Prometeu, o homem essencial, o vero modelo, maior que o varão de Plutarco por ousar romper limites em voos só pensáveis aos divinos. Adão, o que nunca se vira nu, nem comendo Eva em muitas mordidas de maçãs. E a casta e bem sã Pandora, tão curiosa e feminina, e displicente de pouco sizo, qual menina buliçosa no trato inocente e no lauto sorriso.
Ou seja: Os homens, arrimando-se em Deus, criaram tantas punições que o céu virou algo inacessível! Tão inaccessível, que mais que um dom, um presente, virou conquista, suprema e extenuada luta de santificação humana, destinada a poucos. Raríssimos!
Daí a lapidar imprecação de Nietzsche, contra a tradição judaico-cristã que cria uma espécie de ressentimento. A figura do perdão é introduzida como uma repulsa ao desejo de vingança, que é adiada e requerida no além; no juízo final, segundo os desígnios divinos, mas sem prescindir de esconjuros, anátemas e excomunhões.
E assim arrima-se a proibição do tamanduá em barrar a festa no céu ao sapo de boca grande e da vida em geral, por reflexão em torno da nossa santidade de Narciso.
Não foi neste toar o anátema cuspido pelo Deputado arruaceiro e alucinado contra o inerme Demóstenes Torres, a Gení do noticiário político conjuntural?
“Joga pedra na Gení!” Diz a música de Chico Buarque em denúncia antifonar da pouca coragem de lapidadores e apedrejadores.
Para o Deputado ensandecido, Demóstenes não irá para o céu, nem que mastigue granito no purgatório até amaciá-lo como chiclete.
Quanto ao Deputado, este vai. Nem que seja no grito, no esporro e na valentia! Apossar-se-á até da chave do céu nos cochilos de São Pedro, para melhor barrar pecadores e infiéis.
Oh suprema vilania dos insensatos! Formular danações eternas aos limitados e contidos.
E as fogueiras logo me chegam às vistas em lúgubres uivos de dor, na lembrança de patíbulos abençoados, erguidos para exemplar purificação perante o vulgo, sob o ritmo de matracas respeitosas, e no rito de abluções tão generosas quanto na mirra almiscarada exalada nos turíbulos perfumosa.
Não seria todo aquele rito um santificar inútil de quem, perante excedente intolerância, já merecia a legenda e a hagiografia?
Não estaria o deletério, na bula e no despautério, enquanto centelha de purificação, por sofrimento e cruel expiação?
Ah, o direito de pensar diferente, de divergir, de discrepar, e até de calar! Indiscutível conquista dos tempos liberais!
Estaria o direito liberal de permanecer em silêncio, um privilégio individual, acima daquele coletivo e bem maior, de descobrir a verdade!?
Que falem por si os torturados em Guantánamo, na coibição dos atentados terroristas, onde o feito não é fictício, mas verdadeiro!
Ou seja: é difícil ser tolerante com quem não nos agrada. Daí os sopapos, em excesso de violência e até as danações eternas, quando não se pode exercer a filosofia do mundo segundo Jack Bauer, o herói sanguinário do seriado americano 24 Horas!
Céu! Para que existe céu, com tanta gente invocando arrogância de sua propriedade em lotes extensivos e glebas incontornáveis?
Terrível, mas é assim o proceder humano perante o erro dos outros: “Você não vai para o céu!” Eis o grito repetido ao léu. Uma espécie de frustração perante a justiça falha dos humanos. Esperança da danação divina, ao seu sabor; implacável!
Assim, o homem continua a repetir-se; incansável e por herança. O que foi é o que será! Diz o Eclesiastes. Em tragédia, farsa ou comédia, responsam os intérpretes da história. Sempre com imprecações aos céus e sob contemplação da pouca inferência dali.
Mas a historieta iniciada acaba com a bicharada voltando para casa às correrias. Após comer, beber e valsar bastante, cada um só queria uma coisa: jiboiar!
E nesta pressa sem fim, alguém empurrou o cágado que despencou céu abaixo se estatelando em mil pedaços no chão.
Quem viu a queda sorriu, porque o perigo e a desgraça, quando não nossos, costumam parecer engraçados.
Compadecida restou apenas Maria, a Mãe dos Aflitos, que catou os pedacinhos do quelônio e os colou com as lágrimas do seu próprio carinho.
E foi por causa desta colagem amorosa, um dos primeiros milagres de Maria, que resultou o traçado caleidoscópico do casco de cágados e jabotis.
Mas, saindo do mundo fabular e retornando ao vale humano de lágrimas, em tantas intolerâncias vis: Quem realmente já foi, encontra-se ali, ou alçar-se-á um dia ao céu?
Eita pergunta difícil! Um desafio a qualquer suma teológica. Não é?