Jorge Tibilletti de Lara
Historiador, Doutorando em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS/COC/FIOCRUZ)
No dia 15 de abril de 2021 a Netflix disponibilizou em seu catálogo o filme Radioactive. Dirigido por Marjane Satrapi e lançado em 2019, o filme conta a história de vida da cientista Marie Curie, uma das figuras mais conhecidas da história do ocidente no século XX. Antes de Radioactive, outros filmes já foram produzidos sobre Curie. Madame Curie, de 1943, dirigido por Mervyn LeRoy, que recebeu, na época, várias indicações ao Oscar; e Marie Curie, de 2016, dirigido por Marie Noëlle, que participou de um circuito mais restrito que o filme de Satrapi.
O objetivo deste texto não é fazer uma crítica cinematográfica. Falo aqui como historiador que atualmente pesquisa a história dos radioisótopos na biologia brasileira, e que conhece um pouco sobre a história da radioatividade e da energia nuclear. Dito isso, o que nos conta o mais recente filme a retratar a biografia de Marie Curie?
Bom, primeiramente, é importante enfatizar que é muito estimulante ver produções contemporâneas revisitando grandes personagens da história das ciências e da história das mulheres. O filme, além disso, tem outros méritos: possui uma ótima fotografia e direção de arte, enquadramentos, cenas e cores muito bonitas e instigantes. A atuação de Rosamund Pike também é digna de nota. Entretanto, gostaria de falar aqui, como historiador, sobre alguns problemas do roteiro. Antes disso, é importante mencionar que eu sei que nenhum filme tem a obrigação de ser verossímil, fiel à realidade. E não será esse o ponto da minha reflexão. Falarei de questões específicas a partir da própria premissa do filme, que é justamente contar a vida de Marie Curie e o impacto do seu trabalho como cientista.
Primeiro, por não contextualizar muito bem o cenário no qual Marie Curie faria suas descobertas, qual seja, uma comunidade ainda impactada pela recém-descoberta dos raios X pelo físico alemão Wilhelm Conrad Röntgen, em 1895, e pelos trabalhos seguintes de Henri Becquerel, em 1896, o filme pode confundir seu telespectador a respeito de qual realmente foi o feito de Curie. Em segundo lugar, o filme não menciona que Henri Becquerel teria também ganhado o prêmio Nobel de física em 1903, junto com o casal Curie. O próprio fato de Marie Curie ter ganhado esse prêmio, sendo a primeira mulher a conseguir tal feito, não é muito explorado. Um terceiro problema, ou aspecto no mínimo estranho do filme, são as cenas, que por vezes aparecem, representando outros contextos históricos de aplicação da “descoberta de Curie”, como se houvesse uma relação direta entre esses eventos. É confuso quando, simplesmente do nada, aparece uma cena ambientada numa clínica em Cleveland, em 1957, na qual uma criança é exposta, com certo receio de seu pai, a um tratamento de medicina nuclear. Cenas mostrando as explosões em Hiroshima e Nagasaki, ocorridas em 1945, e o acidente nuclear de Chernobyl, de 1986, também aparecem depois. Com isso, o filme retorna a eventos relacionados ao tema da radiação e da energia nuclear, já muito conhecidos, não acrescentando nada a essas histórias, e fazendo uma correlação com a vida de Marie Curie que, ao meu ver, é bastante forçada.
Pela linguagem cinematográfica, é como se Marie Curie, no seu leito de morte, se arrependesse de ter descoberto a radioatividade, baseado em suas “lembranças” (que, no caso, não teriam como existir) ou na sua presença fantasmagórica nesses outros eventos. Parece que, entre os feitos de Marie Curie e os outros eventos posteriores envolvendo o tema da energia nuclear, não aconteceu nada. Mas Marie Curie, falecida em 1934, pertenceu a um mundo que ainda não conhecia as potencialidades e as problemáticas dos átomos instáveis e da radiação, que surgiriam na década de 1940 e que ganhariam força ao longo da Guerra Fria. A falta de exploração do contexto científico e social em que viveu Curie também, mais uma vez, pode levar a uma visão heroica da personagem principal. É evidente que Marie Curie é uma das principais personagens da história da radioatividade e da história das ciências do século XX, mas certamente não é a única. Afinal, na ciência, nada é feito isoladamente.
A história da radioatividade é um dos episódios mais bem documentados da história das ciências. Nesse sentido, omitir um Nobel de Becquerel, não explorar tanto o fato de Marie Curie ter ganhado esse mesmo prêmio em 1903 e 1911, não contextualizar um mundo que havia recentemente conhecido as imagens produzidas pelos raios X e, sobretudo, relacionar de uma forma tão estereotipada a vida de Curie com eventos emblemáticos na história da energia nuclear são, na minha opinião, alguns dos pontos mais problemáticos do filme. Sem falar que Marjane Satrapi, como franco-iraniana, poderia muito bem ter feito um filme em língua francesa, usando o idioma polonês nas cenas da infância de Curie. Por que sempre o inglês?