Reforma Política para além das eleições

Finalizadas as eleições gerais de 2010, as atenções se voltam para as necessárias mudanças na legislação eleitoral, com o objetivo de, cada vez mais, fortalecer o sistema democrático representativo e a soberania da vontade do eleitor contra todo tipo de abuso, em especial o abuso do poder econômico.

 

Essa necessidade de contínuo aperfeiçoamento da legislação eleitoral será aqui abordada em momento posterior. Todavia, há um debate que precede a discussão propriamente eleitoral, que é o debate da reforma política. Mas uma reforma política ampla, que garanta ao povo a sua efetiva condição de soberano das questões políticas que nos dizem respeito enquanto nação organizada.

 

Com efeito, a Constituição de 1988 consagrou a democracia semidireta, entendida esta como a forma de governo caracterizada pela soberania popular, que compreende todo o poder político como pertencente ao povo e exercido em seu nome, diretamente, por meio de diversas formas, entre as quais o voto direto e secreto, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, bem como por meio de representantes eleitos periodiamente. A Constituição não excluiu nem o sistema representativo nem a participação popular direta, ao contrário, os conciliou.

 

Porém, essa conciliação ainda está longe de se efetivar na prática política nacional. Por um lado, os mecanismos de participação direta do povo no processo político (plebiscito, referendo, iniciativa popular) ainda não são utilizados a contento, até porque bloqueados pela elite político-econômica dominante. Por outro lado, o sistema representativo apresenta sérias falhas, que se apresentam como obstáculos à efetivação e autenticidade da própria democracia indireta.

 

Não se pode esquecer, além disso, que o sistema representativo se apresenta atualmente em forte crise de eficácia e legitimidade. PAULO BONAVIDES é bem severo em sua análise sobre o sistema representativo:

 

O emprego deste, ao longo de quatro repúblicas, por mais de um século, não eliminou as oligarquias, não transferiu ao povo o comando e a direção dos negócios públicos, não fortaleceu nem legitimou nem tampouco fez genuína a presença dos partidos no exercício do poder. Ao contrário, tornou mais ásperas e agudas as contradições partidárias em matéria de participação governativa eficaz. Do mesmo passo fez, também, do poder pessoal, da hegemonia executiva e da rede de interesses poderosos e privilegiados, a essência de toda uma política guiada no interesse próprio de minorias refratárias à prevalência da vontade social e sem respaldo de opinião junto das camadas majoritárias da Sociedade.[1]

 

De fato, o exercício da representação política, mais especificamente nos parlamentos, apresenta graves distorções, quer decorrentes da própria atuação dos representantes, quer do próprio arcabouço institucional atualmente em vigor.[2]

 

Esse quadro gera uma contínua insatisfação – ou, no mínimo, passividade – do cidadão frente à democracia. FÁBIO KONDER COMPARATO bem analisou o fenômeno, cada vez mais intenso e presente:

 

A causa dessa enorme frustração com a democracia é óbvia. Ao cabo de cada eleição (portanto, agora, de dois em dois anos), o povo brasileiro percebe, com sempre maior nitidez, que assinou um cheque em branco em favor dos eleitos. Eles podem preenchê-lo como bem entendem, sem ter de prestar contas ao emitente.

Escusado dizer que esse procedimento é claramente anti-republicano e antidemocrático. A verdadeira República não se opõe necessariamente à monarquia, mas sim à submissão do bem comum do povo a interesses particulares, sejam eles de indivíduos, famílias, classes, partidos, igrejas, corporações ou, até mesmo, de entidades estatais. A verdadeira democracia não é só o regime político em que o povo elege periodicamente os governantes mas, antes de tudo, aquele em que o povo não abre mão do seu poder soberano de decidir as grandes questões que empenham o futuro nacional e de controlar a atuação de todos os agentes públicos, em qualquer órgão do Estado em que se situem.[3]

 

Portanto, a urgente reforma política que o Brasil precisa é aquela que garanta ao povo o exercício dos mecanismos de deliberação política direta. A proposta, que inclusive é absolutamente compatível com o texto constitucional, sendo até mesmo sua diretriz, é que a democracia direta seja intensificada, ou seja, que se intensifiquem os diversos mecanismos de participação popular nas deliberações dos negócios que envolvem os destinos do Estado e de seus integrantes, tornando-os contraponto às mazelas do sistema representativo, fazendo a vontade popular exercer contínua e crescente pressão sobre seus representantes.[4]

 

Nesse sentido, já em 2005 a Ordem dos Advogados do Brasil (com apoio de diversas entidades da sociedade civil e sob a condução intelectual de Fábio Konder Comparato) lançou a Campanha Nacional em Defesa da República e Cidadania, com oficial apresentação das seguintes propostas prioritárias:

 

1) cria a iniciativa popular de plebiscitos e referendos;
2) permite ao povo decidir por plebiscito sobre a realização das políticas econômicas e sociais previstas na Constituição, bem como sobre a concessão de serviços públicos e a alienação do controle de empresas estatais;
3) torna dependente de decisão popular a alienação de bens pertencentes ao patrimônio nacional;

4) estende o referendo a emendas constitucionais e a acordos ou tratados internacionais;
5) torna obrigatório o referendo de quaisquer leis em matéria eleitoral;
6) estabelece preferência na tramitação de projetos de lei de iniciativa popular e impede a alteração ou a revogação de leis de iniciativa popular sem a concordância do povo.

 

Cinco anos após, o quadro não mudou muito, e essas propostas, infelizmente, não avançaram em discussões no Congresso Nacional. A apatia com que o povo acompanhou as eleições gerais de 2010, porém, revela a imperiosa necessidade de que a sociedade priorize, antes de qualquer reforma eleitoral, a reforma política, que finalmente leve o povo à condição de verdadeiro soberano do nosso Estado Democrático de Direito.



[1] BONAVIDES, Paulo. “Um Novo Conceito de Democracia”, in Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 351.

[2] Não se pode esquecer, contudo, que o poder legislativo, apesar de todas as suas graves falhas, é o poder mais democrático, mais aberto à população, mais sensível ao clamor e controle popular, em última instância efetuado por meio do voto. E, apesar de seus inúmeros problemas, o parlamento brasileiro é, comparado a outros parlamentos mundo afora, atuante.

[3] “Viva o Povo Brasileiro”, in Folha de São Paulo, Seção Tendências/Debates, 15 de novembro de 2005.

[4] Consensuando-se que um retorno à democracia direta “pura”, como existiu na Grécia Antiga, notadamente em Atenas (deliberação dos cidadãos em praça pública sobre os destinos da polis), é impossível nos dias atuais, interpretam-se as diretrizes constitucionais no sentido de que a vida política da nação deve combinar a existência do sistema representativo com o uso cada vez mais constante e intenso dos mecanismos de participação popular, que servirão como forte pressão para o bom funcionamento do sistema representativo.

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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