Relembrando um grande vate

   Um morador inquieto se preparava para o ato solene. No ocaso, ele realizava suas primeiras orações antes do jantar, cercado por familiares. Rezava-se pela mesa farta. Rezava-se pela família. Clamava-se e dedicava a ceia às Dores da Virgem. Antônio Conde Dias aparentava estar ansioso para o momento que iria testemunhar. Na hora da Ave-Maria o sino da matriz dobrava chamando os devotos para o ato solene. Ouvia-se o estrondo doloroso do bronze e os murmúrios das mulheres descalças pelas ruas. O patriarca convocava seus familiares para o cortejo e seguia para o templo sagrado.

Assim o professor Magno Francisco de Jesus Santos, professor e especialista em Ciências da Religião, descreve o meu pai – Antônio Conde Dias – no trabalho O Triunfo da Quaresma: Práticas Romanizadores na Freguesia de Nossa Senhora D’Ajuda, publicado em Seculum – Revista de História da Universidade Federal da Paraíba, em dezembro de 2011, no ano em que celebrávamos o seu centenário de nascimento.

E continua: Pelas ruas nada de alegria. A população de Itaporanga d’Ajuda, cidade cravada às margens do Rio Vaza-barris, parecia entender o significado daquele momento. Nas janelas dos casarões podiam ser vistos jarros de flores, imagens sacras, quadros com cenas da Via-Sacra e velas. Eram os Passos da procissão que iria percorrer as ruas. Na Praça da Matriz, a imponente igreja encontrava-se de portas abertas, repleta de devotos venerando as sagradas imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora da Soledade. Dos povoados e das cidades vizinhas chegavam os romeiros, alguns vestindo mortalhas e outros com velas nas mãos. Cercado pela família, Antônio Conde Dias observava os atos de fé e percebia a interação dos devotos com os santos.

A descrição do professor Magno para a Procissão do Encontro, umas das principais tradições do catolicismo penitencial em Sergipe, levou-me de imediato à lembrança dos festejos alusivos à celebração do “dois de fevereiro”, quando a cidade de Itaporanga, em júbilo, rende as últimas preces à sua padroeira, após uma semana de intensas atividades religiosas.   Mas a maior motivação para reler o artigo em epígrafe foi o vídeo que assisti, na semana que passou, enviado pelo amigo Gil Rodrigues, com o Hino oficial da Padroeira – Nossa Senhora d’Ajuda, com letra do meu pai e música do maestro Genaro Plech, entoado por paroquianos locais. A emoção profunda da audição remeteu-me à infância e adolescência, quando presenciava, a cada dois de fevereiro, o canto de fé ser entoado durante toda a procissão, que se arrastava pelas ruas e ladeiras da cidade até chegar ao templo sagrado.

O Hino de Nossa Senhora d’Ajuda foi composto em meados de 1948 e oficializado pelo Monsenhor Carlos Camélio Costa, Vigário Geral, em dezembro. A partir do ano seguinte, ele passou a ser cantado anualmente na festa da padroeira, até os dias atuais. O Hino do vídeo dessa vez vem com uma roupagem diferente, graças ao arranjo do professor Adenilson Santos Júnior. No refrão vigoroso, exalta a devoção pela Senhora d’Ajuda: Terra nobre, pujante e querida, neste dia de glória e louvor! Vem render grandiosa homenagem, à Excelsa Rainha do amor!

Esse episódio reforça a importância do trabalho do meu pai como agente difusor das práticas cristãs, como um homem de profunda religiosidade e que conseguia, através dos seus incontáveis artigos para a imprensa sergipana, abrir generosos espaços para a divulgação das celebrações que ocorriam na diocese, além de produzir outros materiais que levavam à discussão temas como a família e a educação.

Místico, no sentido religioso, meu pai adorava, com fervor, a sua padroeira, para quem sempre exortava as suas bênçãos em favor dos renegados, dos ímpios, dos desesperados, dos descrentes. Democrata convicto, religioso por formação, abordou nos seus escritos problemas de todas as naturezas, sempre se havendo com serenidade, equilíbrio e muita coragem do externar, com sobriedade, mas imparcialidade, as causas e efeitos do chamado mundo moderno, cujas ações, às vezes, resvalam para a corrupção, a falta de amor, o conformismo, a indiferença, a incompetência. O meu pai soube, com rara sabedoria, tratar das decisões negativas da sua competência, sem destratar nem conspurcar a dignidade do semelhante. É nisso, verdadeiramente, em que reside a beleza do acervo jornalístico que deixou para as novas gerações. Homem simples, tímido, distante das discussões estéreis, tinha como tema, principalmente, o amor, o entendimento, a cooperação, análise detida e correta do assunto abordado, desprovido de radicalismo e má vontade. Ao contrário, sobrepunha à estupidez e ao desvario, a racionalidade, à luta de ideias, o diálogo, como bem ressaltou o seu fraternal amigo dos bons tempos da Associação Sergipana de Imprensa, o jornalista Bemvindo Salles de Campos Neto.

Na sua morte, em 30 de janeiro de 1992, recebeu o elogio sincero da escritora e poeta Carmelita Fontes: como católico exemplar, Conde Dias explicou sua fé pela vivência cristã e pelas palavras de convicção que permeavam seus textos sempre fieis aos princípios da crença que professava. Na sua Igreja, reconhecia as autoridades dos Papas, dos cardeais e bispos, a legitimidade da pregação evangélico-sacerdotal, o simbolismo do ritual católico-romano: é a solenidade do sagrado. Deus é solene e simples e sua mensagem por esse viés do tempo, da contingência humana para atingir os espíritos. Em sua crença, Deus trafegava, sem fronteiras, reconhecido e amado em todas as suas formas…

Antônio Conde Dias soube-se fazer querido e por isso será sempre bem lembrado.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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