Resistir à escalada de exceção: missão da cidadania!

Na véspera do início da Copa do Mundo, em 11/06/2014, escrevemos: “Vai ter Copa. E também protestos. Viva a democracia!”.

Teve Copa. E também protestos, em escala quantitativa muito inferior aos de junho de 2013. A repressão abusiva aos legítimos protestos, todavia, foi muito mais intensa e organizada, contando com suporte da grande mídia legitimador de verdadeiras práticas de exceção, inconstitucionais e que claramente flertam com a ruptura do Estado de Direito.

Vladimir Safatle, em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo na data de 15/07/2014, bem advertiu :

“Não serei o primeiro a lembrar que, dentre os vários legados da Copa do Mundo, um dos mais duradouros será certamente a ampliação da zona de suspensão de direitos. O Brasil já era conhecido por seu histórico de violência policial, de desrespeito aos direitos civis e pela proximidade entre bandidos e a polícia. Nesta Copa do Mundo, a despeito da segurança contra manifestações políticas, tal processo chegou muito próximo da perfeição.
(…)
O problema, como costumava dizer o filósofo italiano Giorgio Agamben, é que práticas de exceção, quando aparecem devido a situações, digamos, excepcionais (como Copas, Olimpíadas, uma invasão de argentinos, guerras ou catástrofes naturais) não desaparecem mais. Elas vão se tornando uma espécie de jurisprudência muda, que pode existir nas entrelinhas, sem precisarem ser claramente enunciadas para serem efetivamente seguidas.”
(grifou-se).

Na verdade, embora esse “estado de exceção” mudo e silencioso tenha mesmo alcançado um perigoso ponto culminante com a repressão aos protestos durante a Copa do Mundo (em especial, a repressão ao protesto no Rio de Janeiro, por ocasião da partida final entre Alemanha e Argentina em 13/07/2014), podemos constatar – e com muita apreensão – que essas práticas vêm se arrastando ao longo dos últimos vinte e cinco anos, tensionando contra a inteira consolidação de nosso processo de redemocratização pós-constituinte de 1987/1988 e avançando paulatinamente aproveitando-se das brechas ainda não supridas em nossa longa  transição “lenta, gradual e segura” projetada pela ditadura militar.

Com efeito, esse paulatino avanço de práticas de exceção é constatado em várias frentes:

– inconstitucional e abusiva utilização das Forças Armadas para atuação em policiamento ostensivo (o que aqui já comentamos em vários textos: “Sistema Constitucional de Crises”, de 01/12/2010; “Forças Armadas e Segurança Pública”, de 09/02/2011; “Forças Armadas e Segurança Pública: subsidiariedade!”, de 26/03/2014; “Indignações seletivas por discriminação de classe”, de 02/04/2014);

– sistemáticas e reiteradas restrições e suspensões de direitos fundamentais (a exemplo da inviolabilidade domiciliar, liberdade de locomoção) de moradores de comunidades periféricas, legitimadas a pretexto do combate ao crime organizado, tratando a todos os moradores, indistintamente, como presumivelmente culpados (o que também foi objeto de comentário nosso aqui em “Indignações seletivas por discriminação de classe”, de 02/04/2014 e “Indignações seletivas”, de 17/08/2011;

– procedimentos cíclicos de criminalização de movimentos sociais, com amplas campanhas publicitárias e de mídia que procuram passar para a sociedade a distorcida ideia de que todos os que se mobilizam legitimamente – em mobilizações políticas que vão desde o singelo exercício da liberdade de manifestação do pensamento, passando pela liberdade de associação e de reunião em locais abertos ao público até o exercício do direito de greve – são “vândalos” ou “criminosos”. Tais procedimentos desembocaram em projetos de lei, que tramitam no Congresso Nacional, que procuram definir juridicamente o crime de “terrorismo” com nítida inspiração ideológica na Lei de Segurança Nacional – utilizada pela ditadura militar para coibir manifestações dissonantes e reprimir movimentos sociais e opositores políticos – e projetos de lei que pretendem regular o exercício da liberdade de reunião em locais abertos ao público, com nítido propósito cerceador de protestos e manifestações (o que também comentamos aqui, em “Criminalização dos protestos e retrocesso na democracia”, de 19/02/2014).

Toda essa escalada de atos de exceção alcança perigoso ponto culminante com a prisão ilegal e abusiva de diversas pessoas, sob o fundamento de que haveria provas de que iriam praticar crimes durante protestos a serem efetuados na data da final da Copa do Mundo.

Manifesto de juristas – encabeçado por Fábio Konder Comparato e que conta com a adesão de diversos professores universitários, advogados e juízes – aponta enfaticamente as diversas ilegalidades naquelas prisões e no inquérito do qual se originaram:

“1) orientado por um explícito e inconstitucional direito penal do autor, ele é conduzido a partir de um rol de perguntas sobre a vida política das pessoas intimadas e chegou-se ao absurdo de proceder à busca e apreensão de livros na casa de alguns “investigados”; 2) no decreto de instauração, está expresso o objetivo ilegal de investigar “indivíduos (que) atuam de forma organizada com o objetivo de questionar o sistema vigente”, sem a indicação de qualquer fato específico que constitua crime; 3) a ampla maioria das pessoas intimadas para “prestar esclarecimentos” foi presa ilegalmente, sem flagrante ou qualquer acusação formal de prática de crime; 4) há infiltração de agentes em manifestações, determinada a partir do inquérito e sem autorização judicial”.

Prisões temporárias sem individualização de condutas e sem explicitação dos fatos que a legitimam; custódia com base em eventos futuros e incertos; prisão indiscriminada de advogados sob o fundamento de associação criminosa aos seus clientes. Esses foram alguns dos motivos que fizeram a “Associação Juízes para a Democracia” emitir nota pública de “Repúdio à Militarização da Política e à Policização da Justiça”, na qual destaca veementemente que “O judiciário não pode ser instrumentalizado para a supressão de direitos da sociedade. Pelo contrário, à atividade jurisdicional é constitucionalmente atribuída independência perante os demais poderes do Estado para assegurar os direitos democráticos dos cidadãos”.

Todo esse contexto, somado a práticas de intimidação e ilegal restrição ao exercício profissional da defesa por parte de advogados dos ativistas – como inviabilização de acesso aos autos e até mesmo prisão indiscriminada de advogados por associação criminosa aos seus clientes – levou à realização, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Rio de Janeiro, de ato público contra a criminalização das manifestações, na data de ontem (22/07/2014), no qual foi elaborada e divulgada a “Carta Aberta pela Democracia e Livre Manifestação” na qual se aponta claramente que “O Brasil está assistindo ao recrudescimento da violência policial e a um aprofundamento de práticas repressivas de exceção”, que “O Estado de Direito está sendo violado e a democracia brasileira sofre grave ameaça, risco que se radicaliza com a criminalização dos movimentos sociais e com a caça ao direito de manifestação”, com convite para adesão de toda a sociedade.

Aqui neste mesmo espaço da Infonet, apontamos, no texto publicado em 19/03/2014 (“Brasil: ditadura nunca mais!”), medidas que consideramos indispensáveis para a efetiva consolidação de nosso Estado Democrático de Direito e para combater retrocessos autoritários, dentre as quais o combate à criminalização dos movimentos sociais e dos legítimos protestos ocupa posição de destaque.

O momento é extremamente delicado e perigoso. A resistência democrática da sociedade precisa ser intensa e imediata. A história mostra situações semelhantes em que da omissão e letargia social resultou o avanço irresistível das práticas de exceção, rumo a ditaduras tradicionais e estados totalitários. Não podemos permitir que de nossa omissão e letargia possa resultar um estado de exceção permanente dentro do formal estado de direito, uma ditadura institucional.

A defesa do Estado Democrático de Direito em sua plenitude é missão essencial da cidadania brasileira!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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