Retrospectiva Jurídica do Semestre

Na tarde de ontem (01/07/20070), o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, concedeu entrevista coletiva, na qual apresentou à imprensa um balanço das atividades desenvolvidas pela Corte durante o primeiro semestre. Não foi a sua primeira: por ocasião de sua posse na Presidência (ocorrida em 23/04), já concedera entrevista coletiva à imprensa (em 24/04).

 

Uma inovação, sem dúvida (a prática de entrevistas coletivas). Não deve passar despercebida a observação de que, voluntariamente ou não, o Presidente do STF marcou diferença de postura em relação ao Presidente da República, que, desde o seu primeiro mandato, é questionado pela pouca freqüência com que as concede.

 

Deve ser registrado que, além do balanço das atividades desenvolvidas, o Ministro Gilmar Mendes opinou sobre temas polêmicos e apresentou pontos de vista em matérias legislativas e institucionais mais amplas do que aquelas propriamente afeitas ao Poder Judiciário (por exemplo, defendeu a criação de uma nova lei contra abusos de autoridade, “porque já são notórios os abusos perpetrados”, repudiou abusos praticados sistematicamente pela Polícia Federal, mostrou-se favorável ao instituto do foro especial por prerrogativa de função, questionou o modelo atual de elaboração da lei orçamentária, criticou a “ideologização” do debate sobre o uso das Forças Armadas em determinadas situações de segurança pública).

 

Trata-se, sem dúvida, de mais um capítulo do “ativismo judicial”, presente no cenário brasileiro tão recentemente quanto de modo intenso, com conseqüências e perplexidades merecedoras de melhor exame.

 

Dito isso, efetuemos nós, aqui, a retrospectiva de vários acontecimentos que marcaram o meio jurídico no primeiro semestre de 2008, muitos dos quais foram objeto de comentários aqui neste mesmo espaço.

 

 

Democracia e Liberdade de Imprensa

 

Em 21/02/08, o Ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, deferiu pedido de medida liminar formulado na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130-7, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista-PDT, para o fim de determinar que juízes e tribunais de todo o Brasil suspendessem o andamento de processos e os efeitos de decisões judiciais que versem sobre diversos dispositivos da “Lei de Imprensa” (Lei nº 5.250/67).

 

Isso porque considerou, acatando argumentação do partido requerente, que a mencionada “Lei de Imprensa” foi elaborada sob a ótica de uma ordem jurídica constitucional (Constituição de 1967 e Emenda nº 01/1969) que “praticamente não tem nada a ver com a atual”, citando precedentes do próprio Supremo Tribunal Federal nessa diretriz.[1]

 

Essa medida liminar foi referendada pelo Plenário do STF na sessão de 27/02/2008. Desde 24/06/2008, os autos se encontram com o Procurador Geral da República, para emissão de parecer quanto ao mérito da ação.

 

 

É impossível governar sem medidas provisórias?

 

O Congresso Nacional retomou o debate, no âmbito de comissões especiais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, de propostas de mudanças constitucionais voltadas para a contenção do excessivo uso e conseqüente abuso na edição de medidas provisórias – atos jurídicos com força imediata de lei, e só posteriormente submetidas à apreciação do Poder Legislativo – pelo Presidente da República.

 

A reação do Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva foi imediata: “Qualquer deputado ou senador sabe que é humanamente impossível governar sem medida provisória, porque o tempo e a agilidade que as coisas costumam acontecer, muitas vezes, são mais rápidos que o tempo das discussões democráticas que são necessárias no Congresso Nacional” (in Folha de São Paulo de 19/03/2008, p. A4).

 

Neste mesmo espaço, defendi que não é impossível governar sem medidas provisórias, e que na verdade é muito cômodo governar com elas. Nesse momento, por exemplo, estão pendentes de apreciação pelo Congresso Nacional 14 (catorze) medidas provisórias! Convido-os a verificar, por si sós, se elas preenchem ou não os pressupostos constitucionais de urgência e relevância (acesse-as em https://.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/Quadro/_Quadro%20Geral.htm#posterioremc).

 

Que o Congresso Nacional não ceda às pressões do Presidente da República e, afirmando-se como Poder realmente independente, aprove emenda constitucional que realmente limite o uso de medidas provisórias a situações estritamente indispensáveis (por exemplo, para abertura de crédito extraordinário no caso de despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública). Ou então, ainda sem aprovação de emenda, que passe a adotar a prática já admitida pela Constituição de rejeitar de imediato, sem apreciação do mérito, as medidas provisórias que não preencham os pressupostos constitucionais da urgência e relevância![2]

 

 

Terceiro Mandato, Plebiscito e Democracia

 

Em abril, tomou conta do noticiário nacional a especulação política de que o Presidente da República planeja propor mudanças nas regras constitucionais de modo a tornar possível a disputa por um terceiro mandato consecutivo como Chefe do Poder Executivo Federal.

 

A proposta acena com a realização de um plebiscito ou referendo popular como condição de validade da inovação jurídica. “Se o povo aprova diretamente, mediante consulta popular livre e consciente, então não há porque negar ao Presidente Lula a possibilidade de disputar o terceiro mandato. A voz do povo é a voz de Deus. Aplique-se a vontade popular!”, é o discurso subjacente.

 

Sustentei aqui mesmo neste espaço que não é a simples realização de plebiscitos e referendos que denota o caráter democrático de um regime político. E que, nos termos colocados, tal proposta não passa de mais um passo perigoso rumo à desordenação das instituições democráticas.[3]

 

 

Reserva Indígena Raposa do Sol

 

Em 09/04/2008, o STF concedeu, em decisão unânime, medida cautelar ao Estado de Roraima (AC 2009), impedindo qualquer operação de retirada de não-índios da reserva indígena “Raposa do Sol”, até o julgamento do mérito das ações em que a demarcação desse reserva é juridicamente questionada.

 

O mérito da controvérsia deverá ser examinado pelo STF no segundo semestre, sendo um dos julgamentos mais relevantes da Suprema Corte em 2008.

 

 

Lei nº 11.672/08 e retenção de recursos repetitivos

 

Em 09/05/2008 foi publicada no Diário Oficial da União a Lei nº 11.672/08 (entrará em vigor 90 dias após a publicação), que acrescenta o Art. 543-C ao Código de Processo Civil, modificando a sistemática do recurso especial, para admitir a sua retenção no Tribunal de segunda instância no caso de multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão jurídica. O Presidente do Tribunal poderá selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais até o pronunciamento definitivo do STJ.

 

 

Cotas raciais e ações afirmativas: um debate necessário

 

Por ocasião das comemorações alusivas ao 13 de maio, o debate em torno da discriminação racial contra os negros no Brasil ganhou novo capítulo.

 

É que está em discussão, no Supremo Tribunal Federal, a constitucionalidade de leis que adotam as chamadas reservas de vagas (ou cotas) em universidades para negros ou grupos minoritários e historicamente discriminados (ADI 3.330 e ADI 3.197, promovidas pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino, a primeira contra o programa federal ProUni e a segunda contra a lei de cotas nos concursos vestibulares das universidades estaduais do Rio de Janeiro).

 

Foram apresentados ao Presidente do STF dois manifestos, subscritos por intelectuais, artistas e representantes de movimentos sociais, cada qual com argumentos a favor e contra a constitucionalidade e a necessidade das cotas raciais no Brasil.

 

A matéria deve ser julgada pelo STF no segundo semestre de 2008.

 

 

Células-tronco embrionárias e direito à vida

 

O Supremo Tribunal Federal concluiu no final de maio o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3510, na qual o Procurador-Geral da República pedia que fosse declarada a inconstitucionalidade do art. 5º e seus parágrafos da Lei nº 11.105/2005 – conhecida como “Lei da Biossegurança” – que autorizam, para fins terapêuticos e de pesquisa científica, a utilização de células-tronco extraídas de embriões inviáveis para o processo de fertilização in vitro ou congelados há mais de três anos.

 

Prevaleceu o entendimento expresso no voto do Relator, Ministro Carlos Ayres Britto, no sentido da constitucionalidade dos dispositivos impugnados e, portanto, pela improcedência da ação (foi acompanhado pela Ministra Ellen Gracie e pela Ministra Carmem Lúcia, bem como pelos Ministros Joaquim Barbosa, Marco Aurélio e Celso de Mello). Os demais Ministros votaram pela procedência parcial da ação, mas ficaram vencidos. O julgamento foi apontado como o mais importante da história do STF. O tema já foi comentado aqui, neste mesmo espaço, em mais de uma oportunidade.

 

 

Filosofia e Sociologia como disciplinas obrigatórias no ensino médio

 

Em 03/06/2008 foi publicada no Diário Oficial a Lei nº 11.684/08, que “altera o art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio”.

 

 

Mudanças no processo penal

 

Em 10/06/2008, foram publicadas no Diário Oficial da União a Lei nº 11.689/08, que “altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos ao Tribunal do Júri, e dá outras providências” e a Lei nº 11.690/08, que “altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos à prova, e dá outras providências”, que entrarão em vigor decorridos 60 (sessenta) dias da publicação.

 

 

Guarda compartilhada

 

Em 16/06/2008, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei nº 11.698/08, que “altera os arts. 1.583 e 1.584 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, para instituir e disciplinar a guarda compartilhada”, e que entrará em vigor decorridos 60 (sessenta) dias da publicação.

 

 

Vaga na educação infantil ou no ensino fundamental em escola mais próxima da residência

 

Em 16/06/2008 foi publicada no Diário Oficial da União a Lei nº 11.700/08, que acrescenta inciso X ao caput do art. 4o da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, para assegurar vaga na escola pública de educação infantil ou de ensino fundamental mais próxima de sua residência a toda criança a partir dos 4 (quatro) anos de idade”, que entrará em vigor em 01/01/2009.

 

 

Mudanças no Código de Trânsito Brasileiro

 

Em 20/06/2008, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei nº 11.705/08, que altera dispositivos da Lei nº 9.503/97 (que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro). Dentre as mudanças, o polêmica estabelecimento de alcoolemia 0 (zero) e imposição de penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do álcool.

 

 

Mudanças no registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição

 

Em 20/06/2008, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei nº 11.706/08, que “Altera e acresce dispositivos à Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição e sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm e define crimes”

 

 

Mudanças no PRONASCI

 

Ainda em 20/06/2008, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei nº 11.707/08, que “altera a Lei no 11.530, de 24 de outubro de 2007, que institui o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – Pronasci”

 

 

Vida Pregressa e Registro de Candidatura

 

Candidato a cargo eletivo que tenha vida pregressa contrária à probidade administrativa e à moralidade para o exercício do mandato, ainda que não haja decisão judicial condenatória definitiva, pode ter o requerimento de registro de candidatura negado pela Justiça Eleitoral?

 

No início do mês de junho, o Tribunal Superior Eleitoral enfrentou mais uma vez o tema. Digo mais uma vez porque, já durante as eleições de 2006, a matéria foi submetida a intenso debate naquela Corte, por ocasião do julgamento do Recuso interposto por Eurico Miranda contra a decisão do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro que negara o registro de sua candidatura naquelas eleições, levando em conta a sua vida pregressa considerada manchada, mesmo sem trânsito em julgado de qualquer condenação.

 

Todavia, tanto em 2006 como em junho de 2008, o TSE adotou entendimento no sentido da impossibilidade da negativa de registro da candidatura em decorrência de vida pregressa contrária à probidade administrativa e à moralidade para o exercício do mandato, quando inexistente trânsito em julgado de condenação criminal.

 

O Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro tem sido um dos mais incisivos aplicadores dessa tese e, no âmbito do TSE, tem contado com o apoio entusiasmado do Ministro Carlos Ayres Britto, atual Presidente da Corte.

 

O debate jurídico em torno dessa questão é extremamente rico. Sem tomar partido, arrisco uma previsão: em tempos de ativismo judicial recente, fortalecido pela “euforia dos princípios” própria de uma era hermenêutica marcadamente pós-positivista, a prevalência da tese que por enquanto foi derrotada é uma questão de tempo, e de pouco tempo.

 

Em tempo: a Associação dos Magistrados do Brasil propôs, em 26/06/2008, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, com pedido de liminar, questionando dispositivo da Lei Complementar 64/90 (Lei de Inelegibilidades) – e o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de que apenas condenação com trânsito em julgado, no exame da vida pregressa dos candidatos, pode ser levado em conta para negar registros de candidatos nas eleições. O Relator da ação é o Ministro Celso de Mello, que promete levar o pedido de medida liminar à apreciação do Plenário em 06/08/2008.

 

 

Concurso Público e Direito à Nomeação

                       

Em 10.06.2008, o STF iniciou julgamento de recurso extraordinário em que a matéria referente ao tema “concurso público e direito à nomeação” voltou a ser discutida, no âmbito de sua Primeira Turma (RE 227480/RJ, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito). O Relator – no que foi acompanhado pelo Ministro Ricardo Lewandowski – votou no sentido de manutenção da jurisprudência da Corte (inexistência de direito), enquanto os Ministros Marco Aurélio (antigo defensor da tese inovadora) e Carmem Lúcia votaram no sentido de que, dentro do limite de vagas previsto no edital, os candidatos aprovados no concurso público possuem, sim, o direito subjetivo à nomeação. A definição do julgamento ficou no aguardo do voto de desempate do Ministro Carlos Ayres Britto.

 

O recente julgamento do Superior Tribunal de Justiça (concluído em 04.12.2007), segundo o qual “o candidato aprovado em concurso público dentro do número de vagas previstas em edital possui direito líquido e certo à nomeação” (Recurso em Mandado de Segurança nº 20.718, Relator Ministro Paulo Medina), abordado na coluna de 20/02/2008[4], pode, sem dúvida alguma, impulsionar alguma mudança de interpretação da matéria por parte do Supremo Tribunal Federal. Senão no julgamento do Recurso Extraordinário acima indicado, em outra ocasião bem próxima. É que o Estado de São Paulo – vencido no recurso do STJ – certamente recorrerá, oportunidade em que a Suprema Corte poderá refletir mais uma vez sobre o tema e, quem sabe, abraçar a nova tese, consagrando em definitivo a renovação jurisprudencial alvissareira.

 

 

Importação de pneus usados

 

Em 27/06/2008, foi realizada a segunda audiência pública da história do STF (a primeira, como sabemos, foi realizada em abril de 2007, no contexto da ação direta de inconstitucionalidade que tratava do tema da pesquisa científica em células-tronco embrionárias).

 

Convocada pela Ministra Carmem Lúcia (relatora), tem a finalidade de ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade científica nessa área do conhecimento e reunir subsídios técnicos para um julgamento mais justo e legitimado da Argüição de Descumprimento Fundamental nº 101 (tudo com base no § 2º do Art. 6º da Lei 9.882/99), em que se discute a compatibilidade com a Constituição de diversas decisões judiciais que autorizam a importação de pneus usados.

 

 

Súmulas Vinculantes

 

Esse foi o semestre das Súmulas Vinculantes.

 

No ano passado inteiro, o STF aprovou 3 (três) súmulas vinculantes. Após a posse do Ministro Gilmar Mendes (notório adepto e entusiasta das súmulas vinculantes e de todos os mecanismos concentradores do controle de constitucionalidade no próprio STF) na presidência do órgão, que ocorreu em 23/04/08, o STF já aprovou mais 7 (sete) súmulas vinculantes (veja enunciado de todas elas em https://.stf.gov.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumulaVinculante).

 

Celeridade ou temeridade?



[1] Veja os comentários à decisão em https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=70736&titulo=mauriciomonteiro.

[2] https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=71592&titulo=mauriciomonteiro

[3] https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=72055&titulo=mauriciomonteiro

[4] https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=70506&titulo=mauriciomonteiro

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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