Prezado Lúcio,
Grato pela sua atenção. Como lhe disse, não poderei estar amanhã no Sarau enfocando o Centenário do médico, escritor, compositor e músico, o nosso querido e lembrado com saudade, seu polifacetado sogro Antônio Garcia. Peço-lhe desculpas. Estarei numa reunião da família de minha mulher, à qual não poderei faltar, em Japaratinga, AL. Envio-lhe o texto sobre a música INJUSTIÇADA. Se achar que merece ser lida fica à sua escolha” (Luiz Eduardo Costa).
Com essa carta, o jornalista, escritor e imortal da Academia Sergipana de Letras, anunciou a sua impossibilidade de participar do Sarau “Antônio Garcia Filho, música e poesia”, promovido pela Sobrames Sergipe, para celebrar o Centenário de Nascimento do saudoso médico. Como idealizador e produtor desse inesquecível Sarau, levado a efeito no auditório do Museu da Gente Sergipana em 27 de maio de 2016, frente à impossibilidade de Luiz apresentar o texto introdutório para a música de Garcia, convidei o presidente da Academia Sergipana de Medicina, o Dr. Roberto César Pereira do Prado para fazer o leitura, o que fez com competência. O Sarau foi extraordinário, ao longo de duas horas, dez músicas de Antônio Garcia foram apresentadas ao público que lotou aquela dependência, com arranjos modernos do maestro Ricardo Vieira, cantores da terra, e para cada música um texto introdutório, apresentado por personalidades que conviveram com o homenageado, colegas, alunos e imortais da Academia de Letras. Em breve, o vídeo completo do Sarau estará disponível no Youtube, no canal da Sobrames Sergipe.
Com a morte de Milena Mandarino, ocorrida nesta semana em Salvador, lembranças foram evocadas, sentimentos
aflorados e o perdão pela injustiça cometida, finalmente manifestado pela família Firpo, após sessenta e dois anos de incompreensões, dúvidas, silêncio e afastamento. Enfim, sensações do passado foram revividas.
O texto de Luiz Eduardo Costa, para a apresentação da música Injustiçada, de Antônio Garcia Filho, foi primoroso e reproduzo abaixo:
¨Em abril de 1958 ocorreu em Aracaju um crime que traumatizou a sociedade. Dormindo na sua casa o médico Carlos Firpo, cidadão conceituado e querido, foi assassinado com uma facada.
Em crimes dessa natureza, dizem os criminologistas franceses: ¨Cherchez la femme ¨. E não demorou, a mulher foi encontrada. Era Dona Milena Mandarino Firpo, esposa do médico, que tramara o assassinato, acumpliciada com o amante, o tenente –coronel aviador Afonso Ferreira Lima, amigo da família e freqüentador da residência dos Mandarino – Firpo. Surgiu um enredo novelesco, que ultrapassou os limites de Sergipe. O militar era personagem de destaque na Força Aérea e ocupava o cargo de Secretário do Conselho de Segurança Nacional. Sua esposa, a professora Edna Faria Lima, era neta do Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, o jurista Bento de Faria, e o seu pai, um Procurador Federal no Rio de Janeiro.
Milena era filha do italiano Nicola Mandarino, homem rico e influente em Sergipe. O trauma causado pelo crime dividiu a sociedade sergipana diante de duas versões antagônicas: uma, a passional, apontada pela Polícia e pelo Ministério Público, outra, a política. O radicalizado clima da época contaminou a discussão, envenenou de tal forma o debate, que logo explodiriam fortes antagonismos e tensas odiosidades.
Milena, até então vista como virtuosa esposa e mãe, católica fervorosa, passou a ser tratada como cruel criminosa e desprezível adúltera. Foi presa em sua casa numa madrugada chuvosa de junho, e levada à Secretaria de Segurança, depois, à Penitenciária, onde permaneceu dois anos aguardado o julgamento, até o pronunciamento do Supremo, absolvendo os acusados. Jogados à execração pública, Milena e o coronel Afonso, passaram a simbolizar a mais abjeta das traições.
Nesse caldeirão de ódios que se misturavam com paixões políticas, era difícil encontrar um mínimo de racionalidade, ou mesmo uma concessão generosa à dúvida enquanto aguardava-se o julgamento. Foi nesse contexto do qual escapava o bom senso, e a condenação já se antecipava no vozerio das ruas, que Antonio Garcia, médico, humanista, intelectual, que unia suas convicções cristãs ao anseio pela Justiça , entendeu que seria preciso remar contra a maré montante da histeria coletiva, para abrir um espaço à reflexão, à sensatez, ou, pelo menos, à piedade, que é parte inseparável da dignidade humana. Antonio Garcia compôs então letra e música de uma canção à qual deu o nome: INJUSTIÇADA.
Não foi apenas uma música, foi um Hino à Razão, produzido num momento em que atitudes de comedimento eram interpretadas como ofensas traiçoeiras à memória do morto. Fosse qual fosse o resultado do julgamento , Antonio Garcia, com a sua música, começou a amenizar o ódio da sentença antecipada, fazendo surgir uma racional e justa expectativa civilizada de Justiça.
A busca pela Justiça em todas as áreas da vida social, foi a preocupação constante desse singular sergipano, Antônio Garcia Filho, referência exemplar no seu tempo , agora, marco virtuoso em nossa História.”
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O crime da Rua Campos, de repercussão nacional, nunca foi totalmente elucidado, os autores materiais foram presos, sendo que um deles, que poderia revelar o nome do mandante, foi torturado até a morte, na calada da noite, na busca de uma confissão ou o que poderia ter sido uma “queima de arquivo”. Milena e Afonsinho, acusados e detidos pela polícia, somente foram liberados dois anos depois, por falta de provas ou inconsistências delas, graças a uma decisão do STJ. Milena, com as duas filhas, foram residir em Salvador e nunca mais regressaram a sua terra.
Em vida, Milena foi de uma fortaleza exemplar para enfrentar as tempestades da vida, as incompreensões e as injustiças, mas viveu com grandeza, caráter e sensibilidade admiráveis. A sua morte, ocorrida na madrugada de 4 de dezembro, é mais um capítulo triste dessa história recente de Sergipe que, após 62 anos, ainda desperta indagações, suspeitas, debates e profundas sensações.