RITA LEE E OS CAVALOS

RITA LEE E OS CAVALOS

Deixei que passasse o frisson do auê, para dizer apenas uma coisa: os cavalos que nos desculpem, nós, humanos, damos mais coices que eles. Somos os cavalos de tróia. O "Cavalo de Tróia" foi uma grande estátua, utilizada como instrumento de guerra pelos gregos para obter acesso a cidade de Tróia. A estátua do cavalo foi recheada com soldados que, durante a noite, abriram os portões da cidade possibilitando a entrada dos gregos e a dominação de Tróia. Daí surgiram os termos "Presente de Grego" e "Cavalo de Tróia". O caso Rita Lee nos remete a nossa possibilidade diária de sermos cavalos, não aqueles que protegem o computador do vírus, mas o quanto nos revelamos violentos e sádicos na vida, nos mais pequenos gestos. Quem nunca assistiu alguém apanhando, acuado, levando soco no estômago, chutes e pontapés e coronhadas na cabeça. Qual, de súbito, a nossa reação, aos nos depararmos com uma mulher apanhando de seu marido ou namorado, uma criança indefesa sendo espancada pelos pais em via pública ou uma idosa sendo empurrada para fora do ônibus pelos “cavalos” passageiros? A nossa reação é quase sempre em defesa do oprimido, dos sem saída, do agredido. Qual não foi a reação de Rita, a Lee, a ovelha negra da família, ao ver policiais com seus cacetetes, em plena arena, cotovelando em fila, os espectadores do seu show? Por que a polícia age assim, passando até com cavalaria por dentro da rua da Cultura, evento este patrocinado, pelo Ministério da Cultura. Sim. Ali estão os pobres, pretos, putas, viados e malditos que não tem outra alternativa, a não ser se aglomerarem onde tem cultura, e pobres, supostamente pobres, iguais a eles – os policiais, recebem tratamento de marginais. O que estamos a arguir não é o destempero de dona Rita, galgada ao patamar de poder sim “levar uma vida sossegada, gostar de sombra e água fresca. Quando tudo está perdido, não adianta se encontrar.” “Vocês não têm o direito de usar a força na meninada – que não tá fazendo nada! Cadê o responsável, eu quero falar! Esse show é meu, não é de vocês! Esse show é minha despedida do palco, e vocês continuam tendo que guardar as pessoas – não agredir. Seus cachorros – coitados dos cachorros…”. Fosse eu Rita teria mostrado a bunda também, teria ficado nua, me jogado do palco, embaixo atrás dos cacetetes dos policiais, para ver como é bom futucar o cão com a vara curta. Mas o stablishment estava presente. Situado num palanque à parte, o governador, chamado de patrão pela cantora, ouviu todos os insultos e saiu para pedir a polícia que evadisse. Mas já era tarde. O espetáculo aviltante, nos fez ouvir da cantora palavras como cachorros, cavalos, filhos disso, filhos daquilo. Estava agora, o poder ditatorial a defender o mando, o mundo dos cavalos humanos, porque a Lei não pode ser menor que o homem. E não!? "O discípulo não está acima do mestre, nem o servo acima do seu senhor e nem o enviado acima de quem o enviou". "Pode porventura um cego guiar outro cego? Não cairão ambos no barranco?" . Quando se perde a confiança na Justiça, ganha o ódio vingativo disse Frei Betto. Foi o ódio vingativo as palavras de Rita Lee. Pretos, pobres, assalariados e a elite desgarrada estavam ali. Deprimente, conforme, não foram as palavras da deusa Rita, foram as atitudes dos praças, revestidos de um poder de opressão. Tão fumando, – e nós trabalhando? Pau neles. A ofensa veio antes em gestos e ações que se perpetuam por este Brasil de Josué de Castro, Darcy Ribeiro e Maria Nely Santos. O Governo do Estado de Sergipe tem evoluído na contratação de shows, os lombrados e os aficionados pela boa música agradecem. Manu Chao, Reação, Rita Lee, Crioulo, o Rappa, seu Jorge e tantos outros podem cantar sem um baseadinho? Que mal há nisso? Exemplo para a família. Que exemplo? Balela de uma sociedade hipócrita e servil. Assim que soube do episódio, Clara Angélica, de Nova York, relatou fato parecido em Aracaju:"Impressionante!!!!! Estou aqui, de cara, Se Rita Lee reagiu com força insultando os policiais, é porque não aguentou o insulto da atitude deles de desrespeito ao povo. Eles chegam armados (não só com armas, mas armados na atitude, com grosseria e revolta, ganham pouco, usam a 'autoridade' que tem para o excesso, vingando as próprias frustrações e revoltas) e tratam o povo como sem fossem criminosos). Toda essa energia deveria ser canalizada na manutenção da segurança da cidade. Quando policiais vão a um show de rock na praia, deviam ser instruidos a se concentrarem somente em manter a paz, retirarem aqueles de compartamento abusivo, assegurarem o clima de paz para o show e não para ficarem catando quem está fumando maconha. O desrespeito da polícia, me parece, provocou a alma irrequieta e irreverente da artista, e seu protesto veio forte. Mas daí levar Rita Lee presa, isto é tão absurdo, não é nem surreal, nem mesmo dadaísta… Uma vez, Caetano Veloso fez um show em Aracaju, logo depois que saiu o disco com a música que ele fez em homenagem à cidade e que falava de João do Alho (ser feliz / o melhor lugar é ser feliz – que ele me disse que compôs numa madrugada caminhando na João Ribeiro, tocando uma flautinha que tinha comprado no mercado, quando ficava hospedado no Hotel Pálace). Depois do show, Caetano foi receber uma homenagem que João do Alho lhe prestava em agradecimento à honrosa menção, ele, toda a banda e convidados. Eu e Joubert estávamos entre os convidados e para lá fomos. Uma mesa enorme, todos felizes, um clima esfuziante e seu João servindo do bom e do melhor. Caetano, lindo e espontâneo (estava acompanhado de uma namoradinha, uma jovem loirinha para quem ele tinha composto 'Você é linda', levantou, fez um brinde e saiu dando bicotas nos músicos. Um bêbado, acompanhado por uma mulher, ao ver a cena gritou impropérios, tipo 'fora, seu veado indecente' e jogou uma garrafa de cerveja na direção de Caetano, que não foi atingido na cabeça por um triz – foi rápido, se abaixou. A garrafa se espatifou no chão e o caos foi formado. Gritos, xingamentos, eu e Joubert dissemos 'Caetano, venha, você tem que sair daqui'. Ele disse, 'não posso deixar meus amigos'. Eu disse 'eles se viram, vc não pode ficar aqui, se expor assim, esses homens podem estar armados'. Ele veio e, quase acocorados, Joubert na frente, me puxando pela mão, eu puxando Caetano e ele, puxando 'você é linda' nos movemos tão rápido quanto possível do local. Ao chegarmos no estacionamento, entramos no meu carro e percebi que meus óculos, que estavam pendurados no pescoço por uma corrente, tinha caido: Joubert, não posso dirigir sem óculos! (Isso, antes da cirurgia de miopia). E Joubert trêmulo: Eu não vou conseguir dirigir. Eu, lágrimas caindo: Então eu tento, mas não vejo nada, a estrada é escura (era o novo João de Alho, na BR). Caetano, do banco de trás, botou a mão no meu ombro direito, afagante e disse: Vamos, eu vejo tudo e vou lhe guiando. Saimos, ele começou a cantarolar baixinho, sempre com a mão no meu ombro, me dando a segurança que precisava e orientando, quando preciso, aqui e ali. Quando entramos na cidade, iluminada, eu disse, 'agora posso ver'. Caetano continuou cantando. Levei-os para o Hotel Beira Mar, onde estavam hospedados. Na porta do hotel, nos olhamos aliviados. Caetano estava passado, parecia totalmente deprimido, exaurido. A moça loira, calada, passada. Eu e Joubert, mortificados, constrangidos, envergonhados. Eu disse: você não merecia isso, por favor, desculpe… esqueça… eu sinto tanto que você tenha sofrido essa violência…' Durante muitos anos Caetano não veio fazer shows em Aracaju, a violência afetou-o muito. A sensibilidade de um artista é elevada, multiplicada muitas vezes. A alma do artista, que alimenta a força da criação, é fragilizada no que se refere a atos de violência, que é um estrupro da alma. Eu e Joubert saimos, mortos de vergonha, exaustos. Pelo retrovisor, vi um Caetano curvado, pequenininho, imensamente triste. Segui chorando, com lágrimas longas molhando o vestidinho lindo branco que comprei para ir linda ao show de Caetano, meu ídolo, meu poeta e cantor… eu e Joubert continuamos calados, nos despedimos em silêncio e fui para casa, me sentindo frágil como uma criança. Chorei muito ainda, adormeci bem tarde, num último soluço naquele choro de pena. Pena de tudo, de mim, de Joubert, de Caetano, da mocinha musa loira, de seu João, coitado, que nem tempo teve de fazer a solenidade programada para a placa de homenagem a Caetano que tinha botado na parede do restaurante. No outro dia, voltei no restaurante com Joubert e achei meus óculos antigos, de ouro, pisoteados, reduzidos a nada , voltei no restaurante com Joubert e achei meus óculos antigos, de ouro, pisoteados, reduzidos a nada. Igualzinho como o nó dolorido que estava no lugar do meu coração e sei, no coração de Caetano. Nunca esqueci esse episódio. Anos depois, soube que Caetano nunca conseguiu falar sobre o assunto, que nunca deixou de incomodar. São experiências traumatizantes.” Benvindo Siqueira também me escreveu dizendo que foi preso aqui.
Rita Lee soltou os cavalos, deu coice pra todo lado e tinha microfone e poder para isso. Os nossos coices do dia a dia são bem mais estúpidos e mordazes, são dados na calada da noite, longe dos holofotes e das câmeras de tv, aquele coice que mata silenciosamente um país, tido como sexta economia do mundo, mas que ainda mata de fome nossas crianças. Rita Lee é ainda a antena da raça. Sua idade nada tem a ver com senilidade. O nosso coice é amparado pela Lei? Sejamos estão todos cavalos mansos, prontos para ser chicoteados na arena dos rodeios onde vivemos todos nós, onde acaba por cair a nossa máscara quando menos esperamos , porque, no fundo, nossa crueldade avaliza a indefesa alheia, diante da platéia que vaia e que tem , no fundo, que repetir com Sartre seu famoso texto sobre Genet: “No fundo de nós próprios, todos nós ocultamos uma ruptura escandalosa que, revelada, nos mudaria subitamente em “objeto de reprovação”. Isolados, censurados pelos nossos fracassos, principalmente em circunstâncias insignificantes, nós conhecemos toda a angústia de errar e de não podermos confessar o erro, de ter razão e não podermos dar razão. Oscilamos todos nós entre a tentação de nos preferirmos a tudo (porque a nossa consciência é para nós o centro do mundo) e a de preferirmos tudo a nossa consciência…Acusadores como todos os outros, estamos ao mesmo tempo sozinhos e acusados por todos. Como a relação social é ambígua e comporta sempre uma parte de fracasso, como somos simultaneamente a multidão chinesa que ri e o chinês aterrado que arrastam ao suplício, como cada pensamento divide tanto quanto une, como toda palavra aproxima pelo que exprime e isola pelo que não diz, como um abismo intransponível separa a certeza subjetiva que temos de nós mesmos e a verdade objetiva que somos para os outros, como não deixamos de nos julgar culpados exatamente quando nos sentimos inocentes, como um acontecimento transforma as melhores intenções em vontade criminosa não apenas na História mas até na vida familiar, como não estamos nunca seguros de retrospectivamente nos tornarmos traidores, como fracassamos sempre na comunicação, no amor, em nos fazermos amar, e cada fracasso nos faz experimentar a nossa solidão, como sonhamos às vezes em apagar a nossa singularidade criminosa confessando-a humildemente, e outras vezes em afirmá-la em desafio na vã esperança de a assumir inteiramente, como somos conformistas às claras, vencidos e patifes no segredo da consciência, como o único recurso do culpado e a única dignidade é a idéia obstinada, o amor, a má-fé e o ressentimento, como não podemos nos arrancar até a objetividade que nos esmaga nem despir a subjetividade que nos desterra, como não nos é permitido nem nos elevar ao ser nem nos abismar ao nada, como em todas as circunstâncias somos impossíveis nulidades, é necessário escutar a voz do nosso próximo, nosso irmão.”

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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