Santidades e Quilombos

A Santidade foi o primeiro ajuntamento social, que apareceu na Bahia e em Sergipe, no século XVI, quando o território era um só. A Inquisição combateu ferozmente as Santidades, puniu muitos dos seus integrantes, mas não impediu que essa forma peculiar de organização social permanecesse, séculos seguidos. A formção comum, nos primórdios das Santidades, era índios, negros e colonos judeus ou cristãos-novos, como atestam, em 1591/92, os processos da Visitação da Bahia, tendo como Inquiridor Heitor Furtado de Mendonça. Sabe-se, pelos mesmos documentos, que as Santidades guardavam cerimônias indígenas, ritos negros, incorporando aspectos da liturgia católica.

 

Fernão Cabral de Taíde, cristão-velho, do Algarve (Portuga) confessou à Inquisição, por volta de 1585, que “se levantou um gentio do sertão com uma nova seita que chamavam Santidade. Nela havia um índio, denominado Tupunam, ou Deus Grande, um Papa, uma Mãe de Deus, e um Sacristão. O ídolo era de pedra, não era afigurado como homem e nem mulher, e em torno dele adoravam e rezavam. E tinham lugares construídos como igrejas, onde colocavam tábuas riscadas e exigiam reverência.”

 

Em outro local, levantou-se uma Santidade que tinha um Deus que dizia aos acoitados que não trabalhassem, porque os mantimentos por si só haviam de nascer e que, quem não acreditasse naquela Santidade se havia de converter em paus e pedras e que a gente branca havia de converter em caça para eles comerem, e que aquela santidade era santa e boa. Domingos Fernandes Nobre, pernambucano, revelou que por volta de 1586 havia no sertão nordestino uma Santidade, tendo um gentio como Papa, uma negra, mulher do Papa e chamada Mãe de Deus, índios como santos e santas e, no altar, um ídolo que era uma figura de animal, que nem demonstrava ser homem, nem pássaro, nem peixe, nem bicho, mas era como Quimera.

 

Várias características das Santidades demonstram a síntese cultural realizada pelos velhos habitantes do Brasil, dos quais aflorou a sociedade brasileira, com seu caldeirão de cultura codificada, no qual se deve buscar a identidade nacional. Também nas Santidades estão os primeiros modelos de organização social, herdados, em certo sentido, pelos grupos folclóricos de folguedos e de danças. As Santidades inspiram, sem dúvida, os quilombos, ajuntamentos negros de resistência, com ingredientes místicos fortes.

 

Canudos é, talvez na história brasileira, a última Santidade, aperfeiçoada pela lidenrança de Antonio Conselheiro, modernizada pela situação política, econômica e social vigente nas últimas décadas do século XIX, quando os militares, engalanados com a vitória na guerra do Paraguai, deram o golpe de Estado que acabou com a monarquia e instituiu a república. José Calasans, o saudoso historiador sergipano, especialista em Canudos e em Conselheiro, tinha aquele episódio como um último quilombo. Na verdade, Canudos era as duas coisas, ou poderia até ser uma terceira coisa, por conta das suas singularidades. De todo modo as características das Santidades e dos Quilombos estavam presentes na gente do Conselheiro.

 

Outro aspecto de suma importância, tanto nas Santidades, como nos Quilombos, é o que remete ao mito medieval da Cocanha, ou seja, a abundância de gêneros, saciando a fome das pessoas dos dois tipos de ajuntamento. O ideal de justiça, de felicidade, de harmonia social era seguido da fartura de todos os alimentos, grantindo o sustento de todos, na própria terra. A Cocanha é um dos mitos mais complexos e ao mesmo tempo mais atraentes, que é encontrado em várias partes do mundo, em versões poéticas, ou em narrativas curtas.

 

No Brasil o mito da Cocanha é recorrente. Assim como está nas Santidades, nos Quilombos, nos eventos ligados ao mito do retorno, ou ao sebastianismo, está na literatura oral, no cordel, nas prédicas religiosas. Viagem a São Saruê, do Manoel Camilo dos Santos, é um folheto de cordel que canta o mito da Cocanha. Seus versos, quase todos, são assim:

 

“Lá os tijolos das casas

são de cristal e marfim,

as portas barras de pedras,

fechaduras de rubim,

as telhas folhas de ouro

e o piso de cetim.

 

“Lá eu vi rios de leite

barreiras de carne assada,

lagoas de mel de abelha

atoleiros de coalhada,

açudes de vinho do Porto

montes de carne guisada.

 

“As pedras de São Saruê

são de queijo e rapadura,

as cacimbas são café

já coado e com quentura,

de tudo assim por diante

existe grande fartura.”

 

Está no imaginário brasileiro, como repositório de formas singulares de organização social e cultural, o registro das Santidades, dos Quilombos, com todos os seus componentes lúdicos, éticos, religiosos e políticos. O mais é conferir.


Permitida a reprodução desde que citada a fonte “Pesquise – Pesquisa de Sergipe / InfoNet”. Contatos, dúvidas ou sugestões de temas: institutotobiasbarreto@infonet.com.br.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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