Santo Souza e Seixas Dória

Santo Souza
Charles de Baudelaire, para quem o relógio é uma deidade sinistra e Octávio Paz, que tem o tempo como pai e como esperança, podem chancelar a relação de dois homens da terra, que envelhecem lúdicos, e que carregam na bagagem da idade as construções que sonharam como artífices da palavra. Com Santo Souza, a poesia foi elevada, como argamassa, para historiar nos anais da existência, a trajetória e a condição humana. Com Seixas Dória a palavra inflamada soou firme, espalhando consciência na pugna nacional pela dignidade da vida.

Santo Souza tem na sua linguagem poética um segredo de intimidade com as forças míticas e místicas que envolvem a vida. Seixas Dória tem no plasma da fala cívica, o engajamento com as causas primeiras, que felicitam a existência. Um e outro, com modos próprios de inserção no contato social, souberam cumprir com talento de mestres uma perene contribuição, que o tempo não apaga. Santo Souza completou, no último dia 27 de janeiro, 91 anos; Seixas Dória completará 93 anos, no próximo dia 23 de fevereiro.

Santo Souza nasceu em Riachuelo, enquanto a escuridão tenebrosa que reduzia homens negros à escravidão, para moverem a economia. Cresceu entre brancos, guardando a alma negra dos ancestrais que venceram as ondas do atlântico, antes de plantarem com a semente do próprio sangue, as sagas de liberdade. Uns, no confronto possível, outros, como Santo Souza, pela via da palavra que tudo pode, arquitetando seu próprio universo, para reclamar de Deus, quando voltasse para Casa, no dizer órfico que ficou perenizado na tradição: Eu vou dizer a Deus, todo o meu sofrimento, quando voltar para casa.

Desde que rabiscou, pela primeira vez, versos de menino, inventando nomes para marcar as folhas soltas e os cadernos, na sua Riachuelo, que Santo Souza é fiel à angústia de raças marcadas pelo ferro do preconceito e identificando a dor que o comove tem feito dela os mais belos poemas, com os quais dignifica ao pedestal do aplauso e do reconhecimento, a sua obra, ainda em trânsito, para vencer o relógio sinistro, deixando-o na rotina triste de indicar que a vida escasseia. Poeta, Santo Souza ordenou, nos livros que publicou, sua aventura órfica, no jogo com os deuses de todas as culturas velhas, como a reescreve-las para t

Seixas Dória
odo o sempre.

Foram muitos livros, não importa quantos, se o dia do poeta não tem fim. Monge em seu castelo de livros, escreve sempre, publica sempre, vivendo sempre como se estivesse com o lume do futuro escorrendo pelos seus olhos. Espanta que aos 91 anos Santo Souza escreva, com a vitalidade de um jovem, repassando nas retinas das novas gerações, nomes de deuses, potestades, lugares fantásticos que estão na origem da cultura humana. Nos últimos anos, Santo Souza tem publicado livros seguidos, dando uma lição que vale como um patrimônio que enriquece a sergipanidade, tão aviltada pela dominação alienígena.

Seixas Dória nasceu em Própria, entre iguais de famílias estabelecidas na margem sergipana do rio São Francisco. Estudou muito, foi estudante do célebre Colégio Antonio Vieira, dos jesuítas, cursou Direito, advogou em Salvador da Bahia, antes de voltar para o seio dos seus e tornar-se, em pouco tempo, um quadro para a vida pública sergipana. Começou na política ao lado de Josafá Carlos Borges, engenheiro que foi Prefeito de Aracaju, na condição de Secretário de Governo, auxiliar direto, com espaço para tomar decisões e tocar a administração. Foi com tal batismo, que ascendeu ao grupo da recém fundada União Democrática Nacional – UDN, como candidato a Deputado Estadual Constituinte, encarregada de redigir a Constituição do Estado, promulgada em 1947. Foi líder da UDN e em 1950 foi reeleito Deputado Estadual, bisou a liderança, e fez nome suficiente para ser eleito, em 1954, e reeleito, em 1958, para a Câmara Federal.

A voz de Seixas Dória surpreendeu os auditórios mais seletos, tanto quanto as massas nas concentrações públicas. O combustível de sua oratória era a defesa das riquezas nacionais, era o combate sistemático da espoliação dos recursos do País, era, a fixação de uma identidade insubmissa, com a qual os brasileiros podiam aspirar o respeito de uma vida digna, com acesso aos bens gerados com o esforço do trabalho. A PETROBRÁS simbolizava, à época, um bem público, intocável, por ser uma expressão de luta, que desde 1953 libertou o Brasil da cobiça estrangeira. Um homem de estatura pequena, mas que agigantava nos palanques e tribunas, pela veemência dos discursos, urdidos pela medida  certa da coragem. Seixas Dória encantou homens e mulheres, jovens e maduros, por onde passava por sua fluente palavra, com a qual fincava sua resistência, que era em nome dos brasileiros de todos os lugares, dos sergipanos que representava.

Em 1962 Seixas Dória inovou na política sergipana, quebrando laços de grupos que radicalizavam, artificialmente, em cada eleição, mas caminham na mesma rotina de dominar o Poder legal. Venceu seu antigo chefe e se fez governador do Estado, quando levou o pequeno Sergipe a ser também grande, no engajamento em favor das Reformas de Base, conjunto de mudanças que ainda hoje o País requer. Recolhido aos afazeres pessoais, soube cumprir a deposição, a prisão e a cassação impostos pelos militares, com a complacência dos políticos. Tentou o retorno, chegou a suplente de Deputado Federal, na eleição de 1982, assumindo por meses o mandato, tendo tempo de reeditar a Frente Parlamentar Nacionalista, que nos anos 50/60 modernizaram o discurso político brasileiro.

Sergipe tem, portanto, a felicidade de ter no seu convívio Santo Souza e Seixas Dória, que envelhecem na paz da dignidade, da obra cultural e política, na consciência de elevaram, aos cumes mais altos, o saber, a arte, a cultura, a consciência política, e principalmente a palavra: arma invencível que vara, sem temor, o tempo.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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