Sergipe e o Conselheiro (IX)

Durante a segunda metade do século XIX, quando a mídia impressa abriu espaço para a campanha abolicionista e surgiram associações dedicadas à liberdade dos negros, a Igreja adotou uma posição conformista, proibindo manifestações de liberdade, minimizando a questão da escravidão, deixando-a fora do perfil da economia daquele tempo. O silêncio sobre a questão escravocrata abafou manifestações, reduzindo-as aos ciclos de festas, quando não havia como controlar a reação política decorrente do sentimento de injustiça, que ganhava corpo em alguns pontos do Brasil, com ênfase para o Nordeste, onde a monocultura da cana respondia por uma patologia de violência, que projetou-se além da abolição.

O movimento do Conselheiro, com seu auge em Canudos, não era visto como uma manifestação popular dos descendentes dos escravos. Raros pesquisadores levaram em consideração a conotação afro-brasileira na população de Canudos. José Calasans, professor e historiador sergipano, radicado e morto em Salvador, na Bahia, viu e interpretou Canudos como um quilombo, o último para indicar, em seu favor, os exemplos anteriores, que misturaram traços do Sebastianismo, da Cocanha e das Santidades, que marcaram, em profundidade, a história mestiça brasileira, no seio da qual floresceu uma religião popular, tipicamente representativa da população, com seu conjunto original de crenças, ainda que mantida a obediência ao controle hierárquico do Catolicismo.

Dois exemplos  esclarecem o choque de opinião de religiosos, em seus atos catequéticos. Um, datado dos meados do século XIX, citando a tolerância da Igreja perante o interesse econômico dos proprietários e senhores de engenho. A voz profética do jesuíta Manoel da Nóbrega, que chegou ao Brasil em 1549, dizia: “A acomodação com a dura realidade (da escravidão), não era questão de uma escolha livre , mas a condição de sobrevivência.” Dizia, de fato, o missionário: “Sem escravos não havia convento, nem residência episcopal ou clerical, nem colégio, nem lavoura, nem engenho, nem criação de gado, nem sustento econômico de forma alguma.” A mentalidade dominante afiançava: “Sem escravos não podia haver Brasil.”

O padre Filismino da Costa Fontes, ordenado em 1868 foi dos poucos vigários que ousava batizar os filhos dos escravos, como o fez em Frei Paulo, contrariando a orientação dos seus superiores. Não sem razão que sob várias óticas, de desafetos e de amigos, o Padre Filismino foi considerado alienado. A fama de doido encobre o incômodo que era seu sacerdócio, antes de ser trancafiado na Bahia e lá morrer, como indigente, deixando uma visão particularíssima do magistério moral da Igreja, entendida pelos seus seguidores, chamados de Caipiras. O caso do vigário de Frei Paulo não era único.

Em Carta do Capitão Geral, Dom Fernando José de Portugal e a Martinho de Melo e Castro, da Corte de Lisboa, sobre as idéias abolicionistas do frade José de Barbarolo, também conhecido como Frei José de Bolonha, para quem havia “escravidão legítima e escravidão ilegítima.” Preso na Nau Belém e proibido de descer à terra firme sem ordem expressa daquela autoridade, o capuchinho foi segredado, isolado, apontado como “surtado” e internado no Hospício de Palma. Parece ter sido comum considerar perturbado todo aquele insurgente, que com idéias próprias desafiava os ambientes controlados. No caso do Padre Filismino, nem seus amigos, incluindo entre eles o intelectual Carvalho Lima Júnior,seu contemporâneo, deram o crédito que as suas idéias reclamavam. Todos preferiram diagnosticar a loucura, como moldura da posição crítica do Vigário de Frei Paulo e de outros insurgentes que tomaram rumos diferenciados, concorrendo para que as lutas pelas liberdades fossem constantes, como um rasgo de consciência, singularizando a história do Brasil.

Certo é que os afro-descendentes estão presentes nos diversos cenários da vida brasileira, dando uma contribuição enxertada das influências mais atraentes. O que falta entender é a dimensão temporal, a vigência de todas s manifestações que destoaram da rotina dominadora. O episódio de Canudos, então, é uma síntese que representa a tradição, ainda que muitos tenham teimado em conciliar o pensamento estabelecido com as manifestações contrárias, desalinhadas, que vicejaram AD LATERA do cotidiano rico da formação inconformada. Os folhetos da literatura de cordel, algumas crenças, os valores ainda em uso, um tipo informal de fé, a moral, tudo, enfim, atesta a vigência de uma história que em tudo contraria o oficialismo do conhecimento.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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