Sergipe e o Conselheiro (XII)

 

A fusão da Cocanha, do Sebastianismo e das Santidades em Canudos transforma o Conselheiro num personagem múltiplo, acumulando singularidades que marcaram, na Europa, a idade do mundo. O descobrimento do Brasil contrariou o conceito universal de humanidade, na medida em que revelava povos inteiros que não descendiam dos filhos de Noé: Cam, Sem e Jafé. A existência dos gentios (assim chamados porque estavam fora do grêmio de Israel) surpreendeu o velho mundo e produziu, no tempo, uma história diversa do conhecimento consolidado pela força dos reinados e pela fé dos religiosos.

O mistério que envolveu o desaparecimento do jovem Rei Dom Sebastião, na guerra dos 3 Reis, em Alcacequibir, na África, atiçou o mito da Cocanha, com suas promessas de juventude eterna, de fartura sem trabalhar, abundância de gêneros, saciando a fome das legiões de pessoas, sustentando a todos, o que levava a um difuso ideal de Justiça. A Cocanha revigorou-se com a morte do jovem rei de Portugal, infiltrando-se na comoção e no luto, para integrar a nova mitologia ligada ao chamado Sebastianismo: o encoberto, aquele que retornará, e que garante aos seus adeptos. O povo brasileiro guarda características que avivam traços ou fragmentos de tais mitos, sincretizando-os eventualmente.

Canudos, vista como uma SANTIDADE, é a mais contundente expressão de várias singularidades brasileiras, resultante de um processo contínuo, embora sem regras cronológicas, incorporado pela figura de Antonio Conselheiro, líder natural desses homens e mulheres crentes na transformação que os mitos, com suas atemporalidades, ensejam, enquanto agentes de proposições, nem sempre ditadas pela consciência, mas pelo impulso que termina justificando as atitudes. A SANTIDADE, então, espelha tudo o que é assemelhado, sendo, assim, um retrato pluralizado, distinto do quadro produzido sob a responsabilidade do Poder. Por isto mesmo o Poder, quando teve oportunidade, criminalizou as Santidades, destruindo-as, como aconteceu no Riachão do Dantas, em Sergipe, e em várias partes do Brasil.

Antonio Conselheiro pareceu ter o perfil adequado para reunir, como líder, as frações da população ávida pela Justiça, na forma como Canudos apresentou. Acorreram milhares de pessoas crentes, obedientes, dispostas, confessando um tipo diferenciado de religião, abalando a fortaleza de um novo regime, que funcionou como pano de fundo para justificar o sangrento embate, que terminou com a destruição de Canudos e o martírio do seu líder e de seguidores. No imaginário, contudo, ficou a utopia, como o poeta Manoel Camilo dos Santos deixou escrito no folheto de cordel VIAGEM A SÃO SARUÊ:

  “Lá os tijolos das casas
  são de cristal e marfim,
  as portas barras de pedras,
   fechaduras de rubim,
  as telhas folhas de ouro
   e o piso de cetim.

  Lá eu vi rios de leite
                      barreiras de carne assada,
                lagos de mel de abelha
  atoleiros de coalhada,
  açudes de vinho do Porto
  montes de carne guisada.

  As pedras de São Saruê
  são de queijo e rapadura,
  as cacimbas são café
  já coado e com quentura,
  de tudo assim por diante,
  existe tanta fartura.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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