Os QUILOMBOS, tão freqüentes até o século XIX na região nordestina, não deixaram imagens e descrições da vida comunitária que havia neles. A idéia de refúgio de escravos, lugar escondido e fortificado prevaleceu sobre o caráter vivencial, cotidiano, dos ajuntamentos. Os registros dos Relatórios e Mensagens dos Presidentes de Província tratam, muito mais como pouso de fuga, o que implica também em resistência, do que em aglomerado social. A acepção do termo, talvez por isso mesmo, tenha QUILOMBO como MOCAMBO, como CHOÇA, como ESCONDERIJO, realçando o aspecto tático da sobrevivência dos escravos fugidos, dos quais há registros em Sergipe.
Sobreviveu o termo QUILOMBOLA, que designava escravo ou escrava refugiado em QUILOMBOS. Recentemente cresceu o uso do termo, na nova luta que os descendentes dos escravos empreendem, atualmente, por terras que no passado, com engenhos de açúcar e fazendas de gado utilizaram o braço escravo em suas produções. Os QUILOMBOLAS eram perseguidos e levados, dominados, de volta aos locais de onde fugiram, o que deixa a impressão que os QUILOMBOS eram ajuntamentos sempre provisórios, feitos e desfeitos com a pressa da fuga e a capacidade de enfrentamento.
A Igreja, de diversas formas, cooperava com os senhores de terra, no controle da escravidão. Datas e festas reuniam negros, como a cerimônia da coroação de Reis negros, registrada em Pernambuco no século XVII, como ocorre, ainda hoje, na festa de Santos Reis, em Japaratuba, todos os anos. Casais de negros assistem missa e depois, em palanque em frente da Igreja Matriz, recebem toscas coroas, que anunciam o reinado de um ano. Um cortejo “real”, seguido pelos grupos folclóricos de Japaratuba, anda pela cidade, atraindo grande número de pessoas que terminam incorporadas à festa anual.
Frei Jaboatão, célebre autor do Novo Orbe Seráfico, livro do século XVIII, conta um caso de uma fuga de escravo da Fazenda Jacoca (Lagarto?), que foi encontrado por um religioso, devolvido ao seu senhor, depois de ser admoestado. Jaboatão atribui a um milagre de Santo Antonio o encontro e o retorno do escravo à sua condição. João Mulungu, no entanto, escapou, várias vezes, de ser preso. As reclamações formais, como atestam documentos de Divina Pastora e de outros lugares sergipanos, ricos em produção de açúcar, contra João Mulungu o dão como um errante lutador, perseguido pelas suas fugas e levantes. Não ficou registro, contudo, de ajuntamento fixo e duradouro.
Na representação artística de fugas de negros, Serafim de Santiago trata, em seu manuscrito Anuário Sancristovense, escrito no século XIX, dos QUILOMBOS, folguedo de negros e de seus perseguidores, representado pelas ruas da antiga capital de Sergipe. Há estreita relação entre o folguedo dos QUILOMBOS, com o dos LAMBE-SUJOS E CABOCLINHOS, documenta dos na mesma São Cristóvão, em Itaporanga, em Laranjeiras, e em outros locais sergipanos. Também aí são parcas as referências sobre os ajuntamentos de escravos, com seu cotidiano. A luta pela liberdade, então, é comum a todas as manifestações: Dom Sebastião enfrentou inimigos, em defesa da fé católica e da liberdade dos seguidores da sua religião, oficial em Portugal, desaparecendo (não há comprovação de sua morte, nem acharam nuca o seu corpo) no Marrocos, África. O mesmo ocorre com as SANTIDADES, que explicitamente arquiteta um céu para seus componentes, e com a essência da COCANHA, que promete a fartura para a garantia da sobrevivência.
Antonio Conselheiro é uma síntese de todos os que lutam e dão aos seus ideais uma radicalidade que, quase sempre, justificam as lutas e as guerras. Canudos tem elementos dos QUILOMBOS, avançando em direção a uma SANTIDADE, com todas as promessas da COCANHA. A desproporção das forças armadas, contra uma multidão de crentes, voltados para a vida, a sobrevivência e a salvação, marca a ação de Governos transformando em guerra um confronto que antes é cultural. O chão místico, quase sagrado, de Canudos exprime o fervor do povo e a força moral do seu líder, presenças ameaçadoras nos sertões da Bahia.
A cabeça de Antonio Conselheiro, cortada ao fim da guerra de Canudos, parecia ter simetria com a cabeça de Joaquim da Silva Xavier, o Tiradentes, também decepada, e com a cabeça de Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampeão, arrancada do corpo e exposta, como um troféu, em várias partes do nordeste brasileiro. Há, entre tais personagens da história do Brasil, uma semelhança que aponta para a coerência de suas lutas, urdidas de símbolos e tradições.