Sobre a Intervenção Federal e o uso interno do Exército

Na última semana a imprensa brasileira bombardeou os cidadãos com imagens chocantes de violência urbana no Rio de Janeiro. Algo que passaria pela banalidade dos centros urbanos brasileiros ganhou tons de horror com várias cenas de vítimas do caos social vivido no Estado do Rio de Janeiro em plena época de sua festividade mais conhecida, o Carnaval. Tal situação levou ao governador do estado, Luiz Fernando Pezão (MDB- RJ), a modificar sua opinião de antes e depois dos eventos festivos, passando de total certeza de que a cidade estava preparada para receber os turistas com segurança para a vergonha de assumir que os planos realizados para a tranquilidade do cidadão foram um enorme fracasso. 
Entretanto, assim como o ditado popular por vezes vira uma regra, uma crise também é momento de oportunidade. Aproveitando o excesso da cobertura midiática das mazelas da população carioca, o governo de imediato buscou o auxílio federal para a pacificação das zonas de conflito. O presidente brasileiro, que apenas esperava um momento para ganhar maior apoio popular para diminuir o desgaste de sua imagem, abraçou tais requisições e, sem nenhuma hesitação, aprovou a intervenção federal no estado do Rio de Janeiro com a utilização das Forças Armada para auxiliar na garantia da segurança pública e da lei. O uso do maior recurso de violência de um Estado para uma situação de crime civil e urbano traz à imagem do presidente uma possível caracterização de “pulso firme” e portador da solução quando os as entidades federadas em si não detêm mais recursos para a resolução de seus problemas.

E, como muitas das políticas públicas que têm sido levadas a cabo no Brasil nos últimos anos, as medidas adotadas são recheadas de polêmicas e problemáticas. A primeira delas é o próprio emprego das Forças Armadas dentro do território nacional, aplicando seu poder de execução contra cidadãos. O fato que o treinamento do Exército- e sua própria concepção, não é a contenção e prisão, e sim a eliminação do inimigo e cumprimento da missão. Ou seja, em seu emprego no caos urbano, a missão é supressão do alvo determinado. E qual é esse alvo? Como identificá-lo? Essa concepção já é pré-concebida ao determinar o CEP em que os soldados atuarão e que tipo de armamento utilizarão para engajar. A construção social e midiática de quem é o inimigo, como ele se veste, comporta-se e transita gera o estereótipo daquele a ser eliminado. O combate já está traçado e o perfil também: o alvo é negro, jovem e vive morro acima.

Outro ponto polêmico é o porquê ser o estado do Rio de Janeiro.  Se Porto Alegre e outras capitais já haviam pedido a intervenção da Força Nacional anteriormente- e com resultados paliativos pífios-, que motivo leva o Governo Federal a atender tão prontamente os cariocas? Há hipóteses existentes que apontam para o apelo midiático que uma ação deste tipo tem em âmbito nacional e internacional. Com a principal emissora de televisão localizada na cidade e cobrindo todos os dias os atos de violência, a sensação de insegurança e de que algo ali deva ser feito de imediato é crescente. Com o palco montado, o ator político sentado na liderança do executivo pode utilizar a pouca legitimidade que lhe resta para se alimentar do desespero da população e lançar medidas imediatistas como a solução para o caso. Além disso, a recente “pacificação” dos morros via intervenção militar que fora veiculada como sucesso em seu início dá respaldo de jurisprudência emocional coletiva que impulsiona a população para aceitar o estado de exceção imposto.

A utilização aqui do termo estado de exceção não é de mero efeito de impacto pelo peso e conotação que tal tipificação gera. No Informativo do Exército (INFORMEX) do dia 16 de fevereiro de 2018, o quarto ponto aponta que, caso seja necessário, há de se suprimir os direitos constitucionais das instituições e dos cidadãos. Em meio a essa histeria de necessidade de abolir os direitos do cidadão, envolve-se também nesse meio a declaração do Comandante do Exército de que não se cobre prestação de contas já que podem levar a uma “Comissão da Verdade no Futuro”. Além disso, existe o respaldo dado pela lei 13.491/2017 que prevê que os crimes cometidos pelos militares nas intervenções sejam julgados pela justiça militar e não pela justiça civil. Ou seja, arbitrariedades e assassinatos por militares são julgados por eles próprios, sem a interferência da população. Por mais que pareça uma perda do Estado democrático de Direito, há representantes dessa mesma instituição que defendem a ação militar e a possibilidade de exercício ilimitado do uso da força. Exemplo disso é o deputado Eduardo Bolsonaro (PSC-SP), que questiona a culpabilidade de um soldado ao executar um inocente em ação, já que aquele estaria sobre estresse e poderia não identificar um alvo equivocado.

A ação em si no Rio de Janeiro não é algo estranho para o exército brasileiro e tampouco para grande parte das Forças Armadas dos principais países do mundo. Tal treinamento de combate urbano e de controle a insurgências já é prático desde a segunda metade do século XX, ganhando especial destaque a partir dos anos 1990. No Brasil, o campo de treinamento e tática desse modelo de combate se dá a partir das intervenções internacionais na qual o país faz parte, sendo a mais importante a MINUSTAH, no Haiti. O combate a guerrilhas e a insurgentes dentro dos campos urbanos favorece o estabelecimento de táticas e modus operandi que, no efeito de bumerangue, pode-se ser aplicado posteriormente dentro do próprio Estado com o objetivo de contenção. Esse efeito é o que Stephen Graham chama de bumerangue de Foucault em seu livro Cidades Sitiadas. Para o autor, as principais batalhas não são em campos de guerra tradicionais contra exércitos, e sim contra cidadão e, especialmente, em movimentos de guerrilha urbana. Nesse sentido, os exércitos treinam em países desestabilizados suas táticas em um laboratório real para, após a missão de intervenção, aplicar internamente caso seja necessário. É de se esperar os movimentos de contenção dentro do próprio Rio de Janeiro, cujo cenário a imprensa já traduz como uma guerra não mais velada.

O pesar que a situação causa para o cidadão é incomensurável, especialmente em dois âmbitos. O primeiro é a perda de direitos e de que a transformação de insurgência em crime está em pleno avanço. Desde a Lei Anti-Terrorismo aprovada ainda no período Dilma, vemos a marginalização cada vez mais excludente do cenário político dos movimentos sociais organizados, da periferia e da classe trabalhadora. O segundo âmbito é que as medidas de força impostas não vêm conjuntamente com prazos e planos de investimento para a melhoria da segurança e das condições sociais das zonas que mais sofrem com o conflito. A resposta para a violência é a pura violência, sem um pensamento de futuro e investimento. Temos apenas governantes que aproveitam a situação para tentar respirar diante de uma opinião pública cada vez mais crítica, sugando como vampiros o desespero da população e regozijando com a situação que lhe dão holofotes, mostrando outros inimigos para o caos, eximindo de si mesmos a culpa pela desordem que suas (in)ações causaram.

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