O texto a seguir foi escrito há um ano, mas segue atual:
Brasília, quarta-feira, primeiro de novembro de 2006. Vôo 1715, com escala em Salvador e destino a Aracaju marcado para as 21:30. Companhia: Gol. Véspera de feriado ou, mais precisamente, véspera de “feriadão”. Fui ao aeroporto com espírito já preparado para atrasos, que poderiam ser de uma, duas, três, até quatro horas. Afinal, havia quatro dias que o noticiário dava conta da crise na aviação brasileira, decorrente do trágico acidente do Boeing da Gol que colidiu com o Legacy da Embraer, ocorrido um mês antes e gerando 154 (cento e cinqüenta e quatro) mortes. Pressionados, os controladores de tráfego aéreo resolvem deixar de operar no limite e passam a atuar nos estritos termos das regras internacionais de segurança. Daí maior intervalo entre pousos e decolagens. Daí o intenso congestionamento aéreo. O Governo Federal parece nocauteado. Não consegue explicar a crise, nem tampouco apresentar sinais de que tem o controle da situação e conseguirá resolvê-la. No aeroporto, o movimento é intenso. Filas enormes nos balcões das empresas, para realização do check-in. A hora do meu vôo chega e eu ainda estou na fila. Tranqüilo, contudo, pois os funcionários da Gol noticiavam que não havia ainda qualquer previsão de partida. Isso em relação ao meu vôo e a tantos outros. Algum tempo depois, consigo efetuar o check-in. Sigo, Folha de São Paulo na mão (que se apresentava como a minha companheira de passatempo nas próximas horas), ao guichê de embarque. Encontro um conhecido que iria embarcar no mesmo vôo, fomos juntos lanchar e depois engatamos um longo papo, colocando as novidades
A história continua, mas esse relato já se alonga demais. Como se percebe, estive no “olho do furacão” da maior crise da aviação brasileira. Quando finalmente consegui chegar em Aracaju e assistir ao noticiário, percebi que aquela bagunça foi generalizada em todo o país, embora maior nos grandes centros.
O objetivo desse depoimento é efetuar a seguinte reflexão: em pelo menos dois momentos diversos passageiros demonstraram revolta e indignação com o que consideraram desrespeito aos seus direitos e com o que estimaram por tratamento desumano que lhes foi imposto, resolvendo então partir para a ofensiva: a) aglomerar-se em frente ao balcão da Gol, impedindo a formação de filas para o check-in de outros passageiros com o objetivo de chamar a atenção para a necessidade de que seus direitos fossem atendidos, dada a preferência que deveriam ter, no embarque, em relação aos passageiros de vôos em horários posteriores; b) tentativa de forçar o embarque em outro vôo com o mesmo destino, impedindo o embarque de passageiros daquele vôo, mais uma vez sob o fundamento do direito que teriam à precedência no embarque.
Em outra ocasião, contexto e âmbito, defendi que atitudes assemelhadas a essas, sob determinados pressupostos e requisitos, seriam legítimas e amparadas pela Constituição (MONTEIRO, Maurício Gentil.O direito de resistência na ordem jurídica constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003 – http://editorarenovar.com.br/loja/MaisProduto.asp?Produto=527). Enfrentei, como já esperava, críticas as mais diversas. É que, na teorização que apresentei, havia fornecido, dentre outros, alguns exemplos de exercício do “direito de resistência”: a) ocupações de propriedades improdutivas por trabalhadores rurais sem-terra ou ocupações de prédios urbanos abandonados por sem-teto; b) greves de trabalhadores em geral, inclusive de servidores públicos; c) ocupações temporárias de espaços públicos por trabalhadores demitidos por empresas concessionárias de serviço público. Tudo isso na perspectiva de conseguir chamar atenção da sociedade e tensionar pela concretização de seus direitos fundamentais.
Fui logo advertido de que o meio adequado para a satisfação dos direitos é o Poder Judiciário. Que não se pode querer assegurar os seus direitos “na marra”, que o Estado existe exatamente para a solução das controvérsias e que, salvo em situações excepcionalíssimas (como legítima defesa ou estado de necessidade), não se admite a prática da auto-tutela. Esses argumentos foram refutados em meu trabalho, mas o que convém analisar aqui é a contradição de quem os usa. É que quando o aviltado em sua condição humana, o desrespeitado em seus direitos é você, então esse tipo de atitude é legítima, é permitida, é válida. Quando o violado é o outro, ainda mais quando esse outro é de condição sócio-econômica desprivilegiada e a atuação dele questiona o status quo, então o seu papel é o de se conformar com o problema e, no máximo, limitar-se a propor as devidas ações judiciais. Pergunto quem é mais aviltado na sua condição de ser humano e mais violado e desrespeitado em seus direitos: Os trabalhadores sem-terra que possuem o direito constitucional à moradia, ao trabalho e à propriedade, ainda mais quando a Constituição impõe ao proprietário do imóvel rural o cumprimento de sua função social, sob pena de desapropriação para fins de reforma agrária? Os desempregados que possuem o direito constitucional ao trabalho, ainda mais quando um dos princípios que a Constituição impõe à ordem econômica é a busca do pleno emprego? Os sem-teto que possuem o direito constitucional à moradia e à propriedade, ainda mais quando a Constituição impõe ao proprietário do imóvel urbano o cumprimento de sua função social, sob pena de desapropriação e também impõe ao Poder Público o dever de promoção de programas de construção de moradias? Ou os passageiros de vôo com atraso exagerado, na véspera de feriadão, em busca do exercício do direito constitucional ao lazer?
Hoje, 10 de dezembro de