Publicamos hoje artigo da colega advogada e amiga pessoal Meirivone Ferreira Aragão:
STF encolhe direito do trabalhador a reclamar parcelas não depositadas do FGTS
Prescrição é a ação do tempo corroendo o direito. É uma criação jurídica cujo objetivo é acolher ilegalidades que foram cristalizadas pelo tempo, por não terem sido levadas à Justiça, vestindo-as com o manto da licitude. A lei que dá o direito é a mesma que o retira, no decurso do tempo, em nome do princípio da segurança das relações jurídicas. É sintetizada no conhecido ditado que diz que “o direito não protege a quem dorme”, pois o “mano velho” cobre a multidão de pecados, para que o seu caminhar não estimule o ódio ou eternize as demandas.
Se não for ajuizada ação no tempo predeterminado, o seu direito, por mais legítimo que seja, perece, acaba, não vai ser ouvido nos Tribunais. É o momento em que a justiça, além de usar a venda para não enxergar, usa também protetor de ouvidos. Porém, se no tempo certo o cidadão lhe entrega a demanda, ela tem a eternidade para dar a resposta definitiva. Seu direito só pode ser reclamado, por exemplo, em cinco anos, como é o caso das demandas trabalhistas, mas o processo pode passar mais de vinte dormindo no berço esplêndido da lentidão crônica do Judiciário. Paradoxos!
Neste toar, decisão majoritária do Supremo Tribunal Federal (8 x 2) tomada na sessão da última quinta-feira (13) no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 709212, com repercussão geral reconhecida, reviu posicionamento e declarou a inconstitucionalidade dos artigos 23, § 5º, da Lei 8.036/1990 e 55 do Regulamento do FGTS aprovado pelo Decreto 99.684/1990, na parte em que ressalvam o “privilégio do FGTS à prescrição trintenária”, haja vista violarem o disposto no art. 7º, XXIX, da Carta de 1988, que a estabelece para os últimos cinco anos, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho.
Destaque-se que esta decisão é exclusiva em relação à cobrança das parcelas não depositadas, não se aplicando ao caso de correção monetária de dos depósitos corretamente realizados, onde prevalece a prescrição da legislação ordinária.
Desde a criação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, com a Lei 5.107/1966, mantido pela Lei 8.036/90 e sacramentado pela jurisprudência do TST, com a Súmula 362, a prescrição era de trinta anos para a cobrança dos créditos – valores mensais – não depositados pelos empregadores. Isto porque a natureza do FGTS é de contribuição social, tal qual são os direitos previdenciários, não se confundindo com o salário, que é verba alimentar, usada para o sustento do trabalhador.
Por conta desta natureza e do seu uso social, para financiar programas habitacionais no país, as empresas contam com a fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego nos recolhimentos, sujeitas a sofrerem penalidades administrativas. Porém, mesmo com toda a fiscalização e ações existentes, informações de abril deste ano alertam que a sonegação do FGTS some de 7% a 8% do total dos valores pagos, que somaram R$ 94 bilhões em 2013. Deste modo, pode oscilar entre R$ 6,5 bilhões e R$ 7,5 bilhões. A redução do tempo prescricional abonará os sonegadores, para o desencanto de muitos trabalhadores brasileiros.
Com o fim da estabilidade e até o presente momento, a falta de regulamentação do artigo constitucional que diz ser a “relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”, os depósitos do FGTS e a multa rescisória de 40%, firmada no artigo 10, I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para o caso de despedida involuntária, acabam sendo o único socorro dos trabalhadores no momento dramático em que recebem a notícia de que foram dispensados. A garantia de que seu tempo de trabalho deveria ser respeitado, ao menos no que concerne ao FGTS, passa a não mais existir no sistema jurídico, tudo por culpa de uma má vontade do STF em reconhecer a peculiaridade do Direito do Trabalho dentro da própria Constituição, que ali albergou apenas as garantias mínimas.
No voto do Ministro Gilmar Mendes, relator do processo onde essa pérola radioativa foi produzida, é afirmado que o recolhimento do FGTS pode ser fiscalizado por diversos entes, inclusive os sindicatos; que é um direito eminentemente trabalhista elencado no artigo 7º, sepultando sua natureza de contribuição social e, portanto sujeito à prescrição do inciso XXVII do artigo 7º; concluindo ainda que este artigo não assegura direitos mínimos, sendo vedado à lei ampliá-los, pois quando a Constituição quis dizer que algum direito era o mínimo, foi explícita no próprio inciso usando as palavras 'nunca inferior' (art.7º, VII), 'no mínimo' (art. 7º, XVI e XXI), 'pelo menos' (art. 7º, XVII).
Essa interpretação rasteira despreza o ícone jamais questionado, por todas as gerações de estudiosos do Direito do Trabalho sob a perspectiva da Constituição de 1988, de que o caput do artigo 7º, ao dispor que “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:”, estabelecera o mínimo de garantias que poderiam ser ampliadas pelas Convenções e Acordos Coletivos de Trabalho, bem como pela legislação ordinária. Seriam todos ignorantes e somente oito mentes privilegiadas que não têm familiaridade com o Direito do Trabalho pensam o contrário e podem definir que assim seja para o país inteiro? Assim foi decidido.
Citando precedentes do direito americano e reconhecendo a teoria da mutação constitucional, o Ministro Relator encerra o voto modulando os efeitos da decisão de maneira ainda confusa, para que surta efeitos a partir daquela sombria quinta-feira 13. Isto significa que os trabalhadores com contrato em curso e parcelas não depositadas, têm o direito de reivindicá-las em sua totalidade até cinco anos contados da última quinta-feira. Caso tenha, por exemplo, parcelas de 15 anos e não venha a reivindicá-las em juízo até 13/11/2019, a partir desta data só poderá pedir os últimos cinco anos. Isto vale para os contratos em curso, pois se extintos, o prazo é de apenas dois anos após o término para ingressar com a ação.
É triste verificar que estamos vivendo uma época onde absurdos se tornam regras. Com esta decisão, firma-se a tendência de que o STF vem se revelando algoz cruel dos direitos trabalhistas, em suas interpretações das leis à luz da Constituição, apagando as luzes que foram acesas em outubro de 1988. Feliz está Norberto Bobbio, que não sobreviveu para escrever em livro “A Era dos Direitos” o epílogo dedicado a este momento no Brasil, com o título “Era uma vez o Direito…”.