Foi escândalo nacional (pois além da ampla divulgação nos meios de comunicação do nosso Estado, foi matéria de destaque do programa “Fantástico”, da Rede Globo de televisão), ainda em etapa inicial: o Ministério Público Eleitoral propôs representação em face de vinte e três dos atuais vinte e quatro deputados estaduais, além de uma ex-deputada, tendo em vista incorreta e ilegal utilização do mecanismo das subvenções sociais parlamentares para repasse a entidades/associações com finalidades eleitorais.
Ainda segundo o Ministério Público Eleitoral, as situações se dividem em deputados (treze) mais gravemente acusados de repassar subvenções a entidades/associações inexistentes, ou que não possuem funcionamento efetivo e portanto não prestam atividades de assistência social, de saúde, educacional ou cultural que justificam o recebimento de recursos públicos, ou seja, acusados de cometimento de fraudes e desvios de finalidade (para os quais o pedido é de cassação do mandato eletivo, além de multa) e aqueles outros, em menor número (seis), acusados apenas de repassar subvenções a associações/entidades que efetivamente prestam atividades de assistência social à população, mas esse repasse seria ilegal em ano eleitoral (para os quais o pedido é apenas o de condenação ao pagamento de multa).
Também foi noticiado que além dos desdobramentos eleitorais, o caso ainda será examinado nas esferas criminal e de improbidade administrativa.
Aqui, pretendemos analisar o que consideramos a raiz do grave problema: a própria existência do mecanismo das subvenções sociais parlamentares, que, além de representar evidente desvio de finalidade de atuação do Poder Legislativo, se soma a outros mecanismos de corrupção da autenticidade do nosso combalido sistema eleitoral representativo.
Em Sergipe, esse mecanismo possui base legal. É a Lei Estadual nº 5.210/2003, que “Dispõe sobre a destinação de subvenções pela Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe a entidades de caráter assistencial”. À Lei Estadual nº 5.210/2003 somam-se as leis orçamentárias anualmente aprovadas, que explicitamente efetuam as destinações das subvenções.
Não obstante a Lei Estadual nº 5.210/2003 estabeleça que somente podem receber “subvenções parlamentares” as “Prefeituras Municipais” ou “Instituições reconhecidas de Utilidade Pública e que estejam registradas no Conselho Estadual ou Municipal de Assistência Social, ou mediante atestado firmado pelo Juiz, Promotor ou Prefeito Municipal onde a Instituição estiver sediada”, dispondo ainda que a assistência social prestada por meio da subvenções deve ter por objetivo a assistência à saúde, a assistência à educação, cultura, esporte e lazer, o amparo aos carentes, deficientes ou não de qualquer idade, a promoção da integração ao mercado de trabalho, a proteção à família, à maternidade, à infância e à velhice, o fato evidenciado pela representação proposta pelo Ministério Público Eleitoral e pela reportagem exibida no programa “Fantástico” é que diversas dessas subvenções parlamentares não atenderam aos objetivos assistenciais e muitas vezes foram destinadas a entidades absolutamente inexistentes no plano da prestação assistencial (entidades “fantasmas” ou de estrutura muito precária).
São inúmeras as inconstitucionalidades desse conjunto legislativo estadual. É que, essencialmente, segundo a Constituição da República: a) o Poder Legislativo, ainda que atipicamente exerça funções administrativas, o faz no plano interno, ou seja, o Poder Legislativo apenas administra a si próprio, seus órgãos, sua estrutura, seu pessoal; suas funções precípuas são legislar e fiscalizar; b) a execução orçamentária de verbas destinadas à assistência social, isto é, aplicação concreta da lei que autoriza a realização de despesas com recursos públicos, é atribuição precípua do Poder Executivo, que possui setores organizados da Administração Pública voltados para a execução de serviços públicos e políticas públicas assistenciais, incluindo eventuais subvenções sociais a instituições privadas sem fins lucrativos; c) é o Poder Legislativo, com o auxílio do Tribunal de Contas, que deve efetuar a fiscalização externa da aplicação dos recursos públicos pela Administração Pública; d) é a Administração Pública que deve prestar contas da execução do orçamento segundo as regras aprovadas em lei pelo Poder Legislativo; e) permitir que o mesmo Poder que elabora as regras orçamentárias seja o Poder a executá-las é afrontar na essência as finalidades da separação de poderes, abrindo margem para o seu descumprimento e para a ausência de mecanismos independentes de fiscalização e controle.
A eventual punição dos responsáveis por desvios de recursos públicos por via das subvenções parlamentares é medida que deve ser aplaudida, sobretudo por seu caráter profilático.
Todavia, é insuficiente, se não servir para coibir doravante o indevido uso de recursos públicos por meio das subvenções parlamentares.
É preciso cortar o mal pela raiz, seja por iniciativa política (revogação da Lei Estadual nº 5.210/2003), seja por iniciativa jurídica de submeter a Lei Estadual nº 5.210/2003 ao controle judicial de constitucionalidade, com vistas à declaração de inconstitucionalidade e consequente retirada do ordenamento jurídico.
Só assim, poderemos ter a certeza de que não mais existirá, nesse assunto, a porta aberta para a possibilidade de novas fraudes, novos desvios e novos abusos na utilização de recursos públicos, inclusive cessando em definitivo o uso das subvenções sociais parlamentares como mecanismos de deturpação do sistema eleitoral representativo e perpetuação de modelos fisiológicos de representação política.