Nem dormiu direito, agitado, sonhando com campos, bolas, luzes intensas e aplausos explosivos. Levantou do colchão no chão quando ouviu a mãe e o irmão mais velho arengando na cozinha. Cozinha, claro, sendo só modo de dizer, a casinha tinha dois cômodos, em um dormiam eles três e a irmã mais nova, no outro se faziam todas as outras coisas da vida. Lavou a cara no pequeno banheiro mambembe – banheiro que os tornava mais ricos do que a maioria dos vizinhos por ali. Sentou-se na mesa com um pão com manteiga e um copo de café com leite, comendo devagar e assistindo a mais uma briga da mãe com o irmão.
O mais velho queria sair com os amigos que também eram contra o maior campeonato da Terra ser realizado no Brasil. Falava palavras difíceis, remoção, direitos constitucionais, soberania. Ele não entendia nenhuma delas, mas era a favor, claro que era a favor. A mãe se desesperava, gritava que a cidade ia estar cheia de polícia, que isso e aquilo. Ele achava tudo uma besteira e comia seu pão com café, observando a cena como se não fizesse parte da vida. Àquela altura, a mãe já chorava, a voz embargada começava a falhar. O irmão saiu sem nem se despedir, vestia uma camisa preta com duas palavras em letras brancas, conseguiu ler apenas FIFA, a outra lhe escapou. Não era muito de leituras e a palavra não parecia estar escrita em português, disse a si desculpando-se.
A mãe enxugou as lágrimas na barra da camiseta, resmungou alguma coisa sobre badernas protestos & polícias, passou para a cozinha sem falar com ele e foi cuidar do almoço. Ele terminou de comer e botou a bola embaixo do braço. Ouviu o grito dela:
– E esse, pronde pensa que vai? – autoritária, dura, desesperada.
– Ôxi, mainha, vô jogar mais os menino – disparou carreira pra rua antes que ela dissesse mais alguma coisa.
Jogou mal naquele dia, cabeça e pés desencontrados. Pensamentos fantasiando futuros para mais tarde, para dez anos. Estádios lotados e explosão de aplausos. Mas a realidade eram os joelhos esfolados de um jogo todo errado. Em casa, a comida já cheirava, a mãe e a irmã sentadas na mesa comendo. Antes que ele chegasse perto, ela já gritou para que fosse tomar um banho antes de ir almoçar.
De barriga cheia, aprontou-se pra sair. A mãe olhou-a quase assustada:
– E agora, mocinho? Pronde cê acha que vai assim todo alinhado? – a sua voz carregava a censura de mãe e a galhofa de descrédito de quem não viu o tempo passar e a criança se tornar quase adolescente.
– Pro estádio, né, mainha? Vou tentar chegar perto deles – os olhos brilhavam de puro encantamento. Os deuses do Olimpo estariam finalmente ao alcance de seus próprios olhos, talvez não de suas mãos, mas ao menos dos olhos. Tinha se preparado arduamente para aquele dia, sabia os horários de chegada dos ônibus, em que portão do estádio iriam entrar, por onde passariam, tudo calculado.
– Mas… eu tô é mole, viu?! Já não me basta seu irmão com as armada dele, agora vem você? Pois em você eu ainda mando e trate de se aquetar, tá me ouvindo? – claro que ouvia, ela gritava a plenos pulmões para toda a comunidade ouvir. Que não houvesse dúvida de quem mandava.
Resmungou um “sim, senhora” lacrimoso e botou a bola embaixo do braço.
– Posso ir jogar bola, pelo menos – choramingou injustiçado, cheio de raiva contida, de sonho despedaçado.
– Pois vá – consentiu – mas num demore muito, nem vá pra muito longe que isso aqui hoje tá cheio de puliça – quem nasceu na cor errada e no lugar errado tem sempre medo do braço armado de quem decide qual a cor certa e o lugar certo para ser gente.
Saiu caminhando devagar, cabisbaixo e choroso até dobrar a esquina, quando se viu longe do alcance daqueles olhos ferozes e protetores, desabalou carreira ladeira abaixo. As sandálias soltavam do pé e ele parava pra pegar, o short quase sem elástico ia descendo pelas pernas e ele segurando, a bola escorregava no abraço inseguro, mas nada detinha a corrida. Não podia se atrasar, não podia perder nenhum segundo daquele que a TV não cansava de repetir que seria o maior espetáculo da Terra. Estava convencido. Convencido que seria um deus de chuteiras, com direito a explosão de aplausos em estádios.
Fazia calor e ele suava muito, mas não se deteve. As obras para o novo estádio tinham diminuído os limites da comunidade, várias casas e pessoas retiradas para algum lugar que lhe era obscuro, chegou rápido à nova avenida também construída para o evento do século no Brasil. Driblou carros, ônibus e motos, dobrou a esquina e alcançou outra avenida de onde já podia vislumbrar o estádio. Parou um pouco pra respirar e traçar sua estratégia em campo, time de um homem só e sua bola de plástico meio murcha. Mirou seu alvo e disparou com a bola nas mãos, foi retido metros adiante não pela zaga, mas pela barreira policial. Quando a avistou, estacou. Melhor não, pensou com seus botões inexistentes.
Calculou ainda ter algum tempo antes de os ônibus chegarem. Pensou um pouco, o estádio deveria estar cercado, as avenidas próximas também. Só queria chegar um pouco mais perto, um lugar em que os ônibus já estivessem diminuindo a marcha, e poderia vê-los, um aceno talvez. Ficou parado no canteiro olhando de longe a barreira policial. Ali eles passariam muito rápido, não ia adiantar, mal veria as cores do ônibus. Suava de calor e aflição. O tempo passava.
Se ao menos o irmão e os amigos fossem protestar ali perto, talvez conseguisse se esgueirar no meio da confusão como se driblasse toda a zaga até o gol. Mas eles não iriam, não chegariam tão perto de uma barreira tão grande de polícias e exército tão zelosos das vidas humanas que interessavam. Não as deles, claro. O tempo se esgotando. Não sabia pronunciar direito os nomes estrangeiros dos jogadores, tampouco os nomes dos times europeus em que jogavam, mas sabia de cor dribles impossíveis, lances inesquecíveis e gols que tentava imitar até um dia ser ele mesmo lá, do outro lado da tela da TV.
Atravessou intranquilo a avenida de tantos carros congestionados, água parada em leito de rio morto. O calor beirava o absurdo, e ele não conseguia pensar em um jeito de furar a barreira. Não contara com isso em todos os seus planos mágicos. Chegou à outra margem do rio e já estava quase na hora que os ônibus deveriam passar. Talvez atrasassem com o congestionamento, consolou-se. Por ali já havia muita gente que tinha ingresso caminhando rumo ao estádio. Suas peles brancas estavam avermelhadas, mas eles pareciam não se importar e faziam uma algazarra barulhenta.
Um policial da barreira o encarou, tentou desviar o olhar e se misturar aos torcedores coloridos. Mas ele não seria nunca como aqueles ali, não poderia ser mais um naquela multidão. Os olhos furiosos o perseguiam, contudo ele não queria se afastar muito da avenida, nem do estádio, ainda tinha alguma esperança. Enfiou-se no meio de um grupo festivo, na ilusão do esconderijo.
– Vaza, chêra cola. Seu lugar é lá encima, vaza – a voz de trovão o encontrara e ele não tinha onde se esconder. Olhou em volta procurando algum cúmplice. As pessoas se afastavam amedrontadas, sobraram só ele, o policial e o sol inclemente. Ouviu as sirenes, viu os batedores ao longe. A primeira seleção se aproximava.
– Só quero vê o ônibus passar, seu policial – sem encará-lo, sem nunca olhar nos olhos da medusa, como lhe ensinaram sua mãe e seu irmão mais velho.
– Tá surdo, desgraça? Vaza já que aqui não é lugar pra você!
Já podia vislumbrar o ônibus, as sirenes mais altas, os torcedores mais barulhentos, ele indeciso. Pra que lado? Pra onde devia ir agora? Viu o policial tirar o cacetete do cinto e correu. Foi em direção à barreira, talvez fosse sua última chance, seu drible mais bonito, melhor lance, maior gol. Escolheu o lado errado para correr. Sentiu um empurrão seco e forte do cacetete na altura das costelas, parecia que ia desfazer-se inteiro, os pés saíram do chão por alguns instantes e o corpo todo se chocou contra o chão de vez. Viu a grama recém aparada muito perto do rosto. As sirenes altas, os gritos de medo e de alegria dos torcedores se misturavam numa estranha música. Fechou os olhos para não sentir o que viria depois.