Thérèse Desqueyroux.

Nascida Larroque, Thérèse Desqueyroux é o personagem epônimo do romance de François Mauriac (1885-1970), publicado em 1927, que em 2012 recebeu uma segunda versão cinematográfica, rebatizada como “Thérèse D.”,  última película conduzida pelo falecido Diretor Claude Miller, tendo Audrey Tautou no papel da infeliz Thérèse, e Gilles Lelouche como seu marido Bernard, longa-metragem que se encontra em exibição na seção Cine Cult do Shopping Jardins.

O que me leva a tomar “Thérèse D.” como tema foi uma circunstância banal.

Eu gosto de acompanhar o meu neto Pedro Henrique ao cinema. Ele tem cinco anos, e com ele eu volto a ser criança, assistindo desenhos com pipoca.

Na semana que passou, fomos ver duas fitas como despedida das férias; “Universidade Monstros” e “Meu Malvado Favorito II”.

Meu neto cursa o 1º ano do Colégio Salvador e lê tudo o que lhe vem pela frente, inclusive as legendas dos filmes.

Pois Bem! Na busca dos horários dos desenhos, eis que eu encontro na Infonet a propaganda do filme “Therese D.”, grafado sem acentos, nem agudo, nem grave, igual à foto do cartaz, seguido do resumo da sinopse: “Therese se casa com Bernard, irmão de sua melhor amiga…”

Série de cartazes: do 1º filme, dirigido por George Franju em 1962, do livro que pertenceu a meu pai e hoje é meu, do recente filme Therese D., dirigido por Claude Miller e lançado em abril de 2013, e que se encontra em cartaz no Shopping Jardins. No filme de 1962 a música é de Maurice Jarre, os diálogos do próprio autor do romance, François Mauriac e foi estrelado por Emmanuelle Riva e Philippe Noiret. Por seu desempenho, Riva recebeu vários prêmios, inclusive o de melhor atriz no festival de Veneza.

A memória me veio rápida: Seria tal filme uma nova versão cinematográfica de “Thérèse Desqueyroux”, romance de François Mauriac, um livro velhinho, edição Livre de Poche de 1955, que eu herdara de meu pai, entre os poucos e raríssimos que ficaram comigo, só porque o tomara emprestado para estudo da língua francesa, com a minha querida professora Maria da Glória Portugal?

A resposta veio de imediato pela informação precisa no texto de Ivan Valença em continuidade à sinopse do filme.

Ivan, que eu encontrara dias antes, amparado por sua bem amada Ana, padecendo dos males de quem adocica em demasia o próprio sangue, e que arrastava uma dolorosa chaga num dos pés, ferimento que o vinha dificultando no exercício de sua criação jornalística e já enciclopédica, sobretudo em cinema.

Mas não é de Ivan, nem de Ana, nem da Professora Glorita, nem de padecimentos de convalescência que pretendo escrever. Mesmo lembrando que neste momento minha querida professora recupera-se também de uma fratura no fêmur, ocorrida nesta semana, e que desperta os cuidados de parentes e amigos, do alto de seus noventa e seis anos de criatividade e alegria.

E nesta criação em meio à dor por lembrança, eu quero falar também de Ivan, de Ana, de Glorita Portugal, de meu pai com sua vasta biblioteca, de minha mãe com o seu manso olhar azul, de mim mesmo, não tão meigo, mas com íris azulada apenas, e de minha sempre escolhida Tereza, porque ao dissertar sobre os padecimentos de Thérèse e de Bernard Desqueyroux, podemos melhor louvar a vida, refletindo sobre uma ficção tão real e possível, quando o viver se torna árido e ressentido, por carência de ternura.

E aqui vale introduzir, por tradução livre extraída do livrinho que pertencera a meu pai, a citação de Charles Baudelaire introduzida por François Mauriac, enquanto epígrafe do seu romance. Porque sua ficção exibe esta insatisfação quase chocante, e que lhe suscitou alguns reparos como escritor católico, perante um contexto laico e farisaico dos anos 1920: “Senhor, tende misericórdia, tende misericórdia dos loucos e das loucas! Ó Criador! Pode existir monstros aos olhos Daquele que sabe por que eles existem, como foram feitos e como eles teriam podido não ser feitos…”

Argelouse embora fosse próxima a Bordeaux era praticamente afastada do mundo, situada entre a montanha, o vasto pinheiral e o mar.

Porque a saga ficcional Mauriaciana, e aqui eu me sirvo também do belo ensaio de Jean-luc Wachthausen, encontrável no site www.etudes-litteraires.com/therese-desqueyroux.php, a saga não começa apenas, quando, nascida Larroque, Thérèse se tornara Desqueyroux por casamento com um seu vizinho, Bernard Desqueyroux, grande proprietário de vasto pinheiral em Boudos, na região da Aquitânia, no noroeste da França, quase na costa do Oceano Atlântico, mais precisamente na bacia de Arcachon, reentrância ao norte do Golfo de Biscaya.

O casamento fora uma aspiração de ambos os cônjuges que pretendiam realizar um desejo das suas famílias, qual seja o de unir as suas propriedades rurais, ampliando o domínio naquela região escassamente povoada.

Não que o casamento tivesse sido negociado por suas famílias apenas; os noivos assim o desejavam também, afinal os alimentava a máxima familiar, segundo a qual, “a propriedade é o inesgotável bem desse mundo, e nada vale viver sem possuir a terra”.

Por outro lado, a trama ficcional pelo seu caráter instigante, perturbador mesmo, parece incorrer apenas no âmbito mórbido do pesadelo e do trágico.

No filme de 1962, cena do casamento onde sevê da esquerda para a direita Anne e seus pais, M. e Mme. de la Trave, Bernard (Philippe Noiret), Thérèse (Emmanuelle Riva) e seu pai M. Larroque, em foto divulgação do filme ma internet. 

No entanto é Mauriac quem confessa por prefácio, num monólogo amoroso com a personagem de sua criação: “Thérèse, muitos dirão que tu não existes. Mas eu sei que tu existes, eu que há tantos anos te observo e muitas vezes te interrompo na passagem do caminho, e te descubro, e reconheço…” 

E prossegue o seu colóquio confessional delicado: “Adolescente, eu me lembro de ter percebido, numa sala sufocante do foro, entregue aos advogados menos ferozes que às senhoras empenachadas, tua pequena figura branca e sem lábios».

“Mais tarde, num salão do campo, tu me apareceste sob os traços de uma mulher feroz que espantava velhas parentas, de um esposo tolo: ‘Mas que tem ela então? Nós a cumulamos de tudo!’” E que depois;  “Te vi através das barreiras vivas de uma família, em que tu te reviravas em passos de loba; e teu olhar mau e triste me desfigurava.”

“Muitos se espantam que eu tivesse podido imaginar uma criatura mais odiosa ainda que todos meus heróis. Saberia eu nunca dizer nada dos seres inundados de virtude e que têm o coração sufocado na mão? Os ‘corações sufocados na mão’ não têm história; mas eu conheço aqueles corações escondidos e misturados inteiramente num corpo de lama”.

Porque Thérèse desde a infância vivera numa espécie de lamaçal pantanoso, por ausência de ternura, desde quando sua mãe morrera no momento em que lhe concedera a luz.

Neste particular, por contingências constatadas na sua ambiência, Mauriac demonstra sensibilidade com as mulheres, marcadas pelos perigos da maternidade, algo que não era reconhecido nem apreciado no justo valor pelos machos de então, denunciando-lhes a indiferença pelo entendimento geral de que se tratava uma missão sacrifical da condição feminina. Tema sobremodo entranhado na reflexão do personagem epônimo do livro tornado filme.

Diferente do filme de 2012, que é datado e cadenciado, o romance e ofilme de 1962 são um grande e sofrido monólogo. Na foto de 1962 colhida na internet Thérèse Desqueyroux (Emmanuelle Riva) sai do foro de Bordaux abandonada por todos de sua família.

Diferente do filme de Claude Miller, que exibe uma sequência narrativa cadenciada, com datação e até uma ambientação conjuntural perante os fatos ocorridos na França dos anos 1920, o livro é um longo monólogo, em que Thérèse, inocentada da tentativa de homicídio do seu esposo por envenenamento com arsênico, começa a refletir sobre a sua existência de mulher solitária, logo após a saída do foro de Bordeaux, ressentindo a repulsa popular diante de uma absolvição forjada a partir de um depoimento do próprio marido, que preferira não a ver condenada aos rigores de uma lei capital, por temer o mal maior do reflexo negativo de um escândalo social.

Ninguém deseja ter um assassino na família.

Neste sentido, para evitar o escárnio e a indignação circundante, é preciso “ser como os gatos que enterram as suas sujeiras”.

Indignação que já estava sendo evitada na própria saída do foro, como se fora uma fuga em roteiro furtivo por rua deserta, acompanhada apenas por seu advogado, “um homem de mãos imundas e unhas entranhadas de sujeira”, e depois encontrando seu pai, um político de concepções liberais radicais, que preocupado com os possíveis respingos em sua candidatura senatorial, escondia-se também na sombra providencial que ampara e camufla os temerosos da execração pública.

E o livro descreve muito bem este encontro de um pai sem qualquer comoção pela libertação da filha, rebento único, que fora poupada da condenação à morte, e que só suscitava a preocupação com uma eventual nódoa na sua candidatura ao Senado, enquanto homem liberal-radical, agnóstico, político de discurso dadivoso social, que sempre vira naquela filha única tão desamparada, um mero estorvo na mais valia pragmática de sua imagem pessoal.

Porque Monsieur Larroque sempre fora assim. Mauriac o traçara seguindo um viés rousseauista, imitando talvez ao próprio Jean Jacques, o Rousseau, enquanto pai distante, ausente e insensível, inclusive ao riso da filha única, desde a infância de Thérèse, que perdera sua mãe e dela não restara qualquer lembrança, uma recordação fotográfica que fosse, ou um depoimento tosco de alguém que a tivesse conhecido, porque tudo se perdera na memória conveniente, por decisão paterna e de toda a família, que assim entendia melhor, enquanto olvidamento imperioso e sepultamento necessário.

Algo tão comum e Igual a tantos antepassados em todas as famílias, cuja recordação é mitigada, pelo empalidecer das cores, esmaecidas não só pelo tempo, mas por livre escolha também, do conveniente sombreamento do passado.

Penumbra que acompanharia Thérèse, abandonada por esta paternidade ausente, desde o seu aleitamento, aos cuidados de uma enfermeira como se fora órfã de pai e mãe, e depois sendo afastada em peregrinação por internatos distantes, de modo que ao pai não se exigisse qualquer obrigação de cuidado e convívio, afinal em sua misoginia paternal Larroque considerava “todas as mulheres seres histéricos, quando não idiotas”, e sua filha um estorvo a evitar, como tudo que o afastasse de seus pinheiros, da extração de resinas, e da sua carreira política, homem da esquerda republicana vigente, agnóstico defensor das teses sociais, anticlericais e liberais da belle époque francesa.

Beleza, liberalidade e euforia de uma época que nunca agasalhara Thérèse, desde criança à adolescência, educada em internatos religiosos, sempre vendo o mundo como um exercício de pureza e santidade concernentes aos claustros conventuais, até porque nas férias faltava-lhe qualquer aconchego familiar, afinal Monsieur Larroque sempre a exilava para Argelouse, onde ficava aos cuidados de Clara, uma tia materna, senhora idosa, totalmente surda e desmemoriada, mas muito alegre, única a lhe conceder um pouco de carinho, ambas, tia e sobrinha, se fazendo amigas e companheiras.

Thérèse (Emmanuelle Riva) e sua cunhada Anne (Edith Scob); duas amigas muito queridas que se odiariam depois. Haveria uma atração sáfica entre as duas, o amor que não ousa dizer seu nome? O livro não permite tal interpretação, nem mesmo qualquer suspeita adulterina por parte de Thérèse, mas a paixão de Anne por Azevedo, e a admiração da outra pelo mesmo homem ensejaria um desentendimento total na amizade.

Dir-se-á que por companhia mesmo, em folguedos e confidências, Thérèse fora companheira apenas de Anne de la Trave, uma colega de internato, vizinha também em Argelouse, aquela que viria a ser sua cunhada, meia irmã de seu futuro marido, Bernard Desqueyroux.

Com Anne, Thérèse trocaria risos e segredos, despertando para a adolescência, a confessar que naquele ambiente claustrofóbico de santidade e pureza, as duas garotas não estavam tão purificadas assim, afinal havia certo prazer em afagos permutados, algo que se poderia imaginar  como uma atração sáfica, daquele amor que não ousa dizer o nome, tema não desenvolvido por Mauriac, mas que perpassa diante de insatisfações variadas.

Porque é esta atração por Anne que faz Thérèse querer se casar com seu irmão Bernard, união bem recebida pelas duas famílias, afinal de contas o conúbio aumentaria significativamente os seus pinheirais, e as duas amigas ficariam mais próximas por laços de parentesco.

O casamento, contudo, longe de trazer a felicidade dos nubentes, lhes acrescera muita monotonia e indiferença.

Bernard, homem tosco e rude do campo, trazia consigo a bisonharia dos simples, daqueles incapazes de qualquer pensamento e reflexão, interessando-se apenas por atividades físicas suarentas e banais, sobretudo a caça, sem sadismo, como um tolo divertimento.

Já Thérèse, adquirira um gosto bem diverso; gostava de ler, escrever cartas, travar diálogos interessantes, tudo que lhe estimulasse o exercício do pensamento e permitisse ultrapassar fronteiras, enquanto ser a repelir limites.

Mas a vida como esposa lhe fora frustrante desde a noite de núpcias, afinal Bernard, sem ser brutal, violento, ou excessivamente lascivo, não soubera satisfaze-la a contento. E se havia qualquer prazer no encontro dos dois sexos, este ficava com o macho, que o exercitava como os porcos grunhindo em cio, enquanto que Thérèse propriamente nada sentia, aprendendo inclusive a fingir um gozo inexistente.

Mas tudo permaneceria bem igual e banal, não fora a notícia por troca de cartas com a cunhada Anne, de sua paixão por um jovem português, Jean Azevedo, esportista velejador, que aparecera naquelas paragens em gozo de férias.

A notícia soou como uma bomba. O jovem português era um judeu, convalescente de tuberculose, figura indesejável para os sestrosos de la Trave, um namoro impossível que era preciso imperiosamente extinguir, tendo em vista que no plano familiar, Anne teria que casar com Deguilhem, um pretendente já bem aceito, por acerto de seus clans.

Assim, por ser Thérèse a melhor amiga e confidente de Anne, lhe foi delegada a missão familiar de providenciar o término do namoro.

Ocorre aí que um desnovelo inesperado, porque Thérèse, por narração epistolar de Anne, começa a se sentir atraída por Azevedo, um personagem que bem pode ser aproximado ao próprio François Mauriac, pela sua natureza lúdica e apolínea, um jovem atraente e insinuante, alguém que sabe desfrutar da beleza da vida, enquanto visão existencial lírica e multifacetada.

Por outro lado, em descrição detalhada das cartas, Anne relata as carícias trocadas com Azevedo, quando esta se lhe entregava completamente, disponível a tudo ceder, enquanto o jovem, dominando como mestre os seus impulsos, bem sabia onde e quando parar, no limite que só ele o tivera definido.

Era uma narração que perturbava Thérèse, afinal nunca experimentara tal agitação, nem na sua degradante noite de núpcias.

Perturbação que se fez maior quando recebeu um retrato de Azevedo numa das cartas da cunhada, dela “belle soeur”, como dizem os franceses, e que lhe provocou uma reação digna de bruxaria ou magia negra, que bem se poderia imaginar como por motivação lesbiana, porque Thérèse enfiara raivosamente um alfinete na foto do rapaz, como se estivesse realmente perfurando o coração do jovem, depois rasgando o retrato em mil pedaços, e assim o quisesse fisicamente destruir.

No filme de Claude Miller, nesta cena do retrato, Audrey Tatou esquece o alfinete e se limita a queimar a fotografia, de modo que o gestual ensaia um misto de raiva ou tentativa de olvido.

Virá depois o encontro pessoal de Thérèse com Azevedo. Ela, que da missão de conseguir a extinção do namoro da cunhada passa a admirar profundamente o jovem, idealizando-o como tudo que almejava em criação, liberdade, e voo pleno sem limites. Tudo o que nunca experimentara, afinal os seus horizontes limitavam-se ao pinheiral juncado no solo árido e ressequido do seu universo.

Azevedo lhe despertara a amplitude do livre sonhar e viver, acordando-a para variadas aspirações em ousadia de arrebatamentos alados.

Poder-se-ia pensar que estava surgindo uma atração pecaminosa entre eles, afinal há um momento em que Thérèse teme ser flagrada em sua companhia. Mas não existe tal relacionamento. Ela é fascinada pelo modo de vida do jovem, que deseja voar apenas, tão plenamente quanto o sonho, em busca de amplas paragens, nas quais não se encontra Anne, com quem só quisera partilhar diversão, sem prometer casar, nem a querer iludir.

Eis então uma carta de término do namoro feita a quatro mãos, missiva que despertaria em Anne uma confusão por mistura de estilos, como se Thérèse estivesse forjando o término do namoro, por imitação da letra de Azevedo, gerando uma inimizade entre as duas amigas para sempre.

Porque iludida e inconformada com as explicações da carta, Anne buscará Azevedo, inutilmente, mas o rapaz realmente fora morar em Paris como dissera no bilhete de despedida.

Thérèse (emmanuelle Riva) admirou-se vivamente pelo espírito livre de Jean Azevedo (Sami Frei), a ponto de ousar libertar-se do claustro onde vivia. Filme de 1962.

Uma despedida sofrida tanto por Anne, por compreensiva ausência do ser amado, quanto por Thérèse, pela ausência daquele ser de sua admiração.

Uma ausência que ampliaria a solidão das duas jovens. De Anne, curtindo sua dor amorosa, e de Thérèse, perdendo o interesse pela vida, assaz comum, sendo indiferente até aos reclamos da própria filhinha, como se estivesse querendo se livrar de todo o universo circundante, do pinheiral, enquanto gradil prisional, da sua opressiva “belle famille”, como assim dizem os franceses dos sogros e sogras, parentela afim adquirida por núpcias, tudo aquilo que a impedia de ser livre, enquanto ser.

De repente, um incêndio imenso ameaça o vasto pinheiral ressequido, despertando em Thérèse a aridez da vida.

Longe de parecer uma tragédia real e iminente, o monumental fogaréu lhe traz calma como se fora uma bênção libertadora, algo que precisava acontecer para destruição em demanda de sua libertação.

Mas o incêndio foi debelado e tudo restara igual.

Houve, porém, um despertar insano de que algo precisava ser feito. Quem sabe não provocar um novo incêndio no pinheiral, com um fósforo aceso e convenientemente jogado, ou uma bagana lançada displicentemente, Thérèse, que fumante inveterada e compulsiva, sempre se policiava para bem esmagar o resto de seus cigarros?

É aí que surge sua vontade louca de assassinar o marido aproveitando-se de sua moléstia cardíaca que utilizava o láudano e o arsênico como remédio. Bastaria que fosse aumentada a dosagem, quem sabe; misturar outras drogas, para conseguir o intento desejado.

O próprio Bernard facilitaria o próprio envenenamento, afinal sempre se atrapalhava no doseamento, confundindo-se com as gotas dos remédios, e com a frequência prescrita na receita.

O resultado é que Bernard tem uma crise tamanha que quase morre de tanto vomitar, despertando suspeitas nos médicos consultados.

A apuração por anamnese, seguida da inquirição necessária, comprovou que Thérèse havia adulterado algumas receitas aviadas na botica local, que, desarquivadas e investigadas, revelaram sua trama assassina.

Em sequência, um processo criminal é aberto contra Thérèse, que fora acusada de falsificação de receita médica por tentativa de homicídio, algo imaginável como monstruoso e escandaloso, a despertar repulsas imensuráveis.

Mas, como os gatos com seus dejetos, as famílias procuram enterrar a sujidade das suas entranhas… Daí a confissão falsa de Bernard inocentando Thérèse, assumindo o envenenamento por sua culpa apenas, por erro nas dosagens ingeridas dos remédios, em distração e displicência.

Finaliza agora a longa reflexão de Thérèse. Ei-la de volta para casa, após ser inocentada no tribunal. Tivera que voltar para o convívio do marido e de sua “belle famille”, sob ameaça de suscitar qualquer suspeita que fomentasse uma reabertura processual.

E o desfecho comprovaria que não iria existir, nem o perdão do marido, nem o de sua parentela afim. Cumprirá uma pena de isolamento num quarto sem direito a se comunicar com ninguém, nem com sua tia surda, que logo morre de desgosto. Será mantida sob vigilância de dois empregados; o capataz Balion, e a doméstica Balionte, sendo-lhe permitido sair apenas, por obrigação de “salvaguardar as aparências”, para presenciar algumas festas, enterros e outros eventos, nos quais a conveniência de uma aparente unidade familiar era exigida.

E o texto prossegue com Thérèse agora definhando, perdendo o brilho no olhar, a vontade de comer, de se banhar, de se cuidar, numa aniquilação assumida a despertar a comiseração de todos, até de Balionte, a doméstica carcereira, que não consegue conviver com tal deliquescência degradante.

Bernard, um exímio amansador de cachorros bravios, bem sabia castigar. Poupara a esposa da condenação à pena capital, somente para evitar o escândalo, mas providenciara o cárcere cruel da purgação do erro de sua esposa.

Mas o sofrimento de Thérèse nos dias, meses e anos decorridos, permanecia um incômodo familiar crescente e intolerável, um desafio até para Balionte, a doméstica tornada carcereira.

Melhor seria recuperar a saúde daquela infeliz mulher encarceirada, deixa-la seguir o seu caminho, prosseguir no anonimato de uma cidade grande como Paris, por exemplo. Thérèse findaria igual a sua mãe, e a tantos esquecidos e nunca lembrados, nem por sua filha Maria, já uma mocinha, aos cuidados de Anne, a tia-mãe que esquecendo Azevedo casara com Deguilhem, o pretendente de gosto familiar, e adotara aquela criança; uma órfã de mãe viva.

"Café de la Paix". Café da Paz: um nome sugestivo para ensejar a ironia dos rótulos destacados nos gestos fingidos. No filme de George Franju de 1962, esta é uma das cenas finais entre Bernard (Philippe Noiret) e Thérèse Desqueyroux (Emmanuelle Riva).

E o livro termina num café parisiense, “Café de la Paix”. Café da Paz, um nome sugestivo para ensejar a ironia dos rótulos destacados nos gestos fingidos.

– “Por que você quis me matar?” – Pergunta finalmente Bernard, sem ver uma causa, uma explicação, afinal nunca houvera uma motivação passional, um ódio ressentido, algo que animasse a fúria de tantos criminosos.

E Thérèse nada explica. A ideia surgira apenas, quando vira o incêndio colossal que ameaçava arrasar o seu vasto e querido pinheiral.

Bernard, homem simples, se despede sem nada entender. Deixa-lhe a conta paga de consumação do café. Há um compromisso de gerenciar os interesses fundiários dela, inclusive para a sua manutenção na cidade grande.

Mas Thérèse não exibe qualquer reação de agrado ou gratidão. Seguirá imersa na multidão dos rostos anônimos pela calçada da cidade grande.

Será, quem o sabe, que ela se fez uma “Thérèse D.” somente, como bem rebatizada no filme de Claude Miller?

No mais, vale retornar ao prefácio de François Mauriac, até porque ao ficcionista não é possível tudo:

“Eu bem gostaria que a dor, Thérèse, te libertasse para Deus; e por muito tempo desejei até que tu fosses digna do nome de Santa Locusta*”. ”Todavia muitos que acreditam na queda e na redenção de nossas almas atormentadas, talvez gritassem como sacrilégio”.
“Na calçada da rua em que te abandono, eu tenho a esperança de que nunca tu estejas só.”

* Explicação necessária: Chamava-se Locusto o assassino que envenenou o imperador romano Claudius, e a Britanicus, o seu filho e eventual sucessor, mortes por mando da esposa e madrasta, Agripina, a mãe de Nero, aquele que incendiaria Roma e costumava alimentar os seus leões com os primeiros cristãos.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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