THOMAS MANN REVISITADO

THOMAS MANN REVISITADO

                                                                             
As vezes me jogo determinando que estou coalhado de dores e chega! Sempre foi assim desde o dia em que supostamente abri o olho. Os três. Quando ainda na infância assisti "Morte em Veneza", de Visconti, inflamei-me mais ainda e disse: nunca serei curado. Pude ver Tadzio em imagens inesquecíveis, aliás eu odeio a palavra inesquecível – prefiro imagens inimagináveis. Quando Dirk Bogard morria numa cadeira de balanço, encantado com a beleza magnânima do garoto. Refratado ainda por luzes que virão, meus olhos encontraram em Thomas Mann a razão e o código de toda uma vida: eu já poderia morrer. ao completar 50 anos de sua morte, em 2005, Thomas Mann deixou em mim a marca da precisão de que a beleza e a palavra colocada em jade, é superior a tudo: é Deus que nos visita. Por isso aos leitores talvez seja necessário ver o filme "Morte em Veneza" , com Gustav Mahler ao fundo, com a quinta sinfonia, quarto movimento, para perceber que o que falo é muito pífio diante de Visconti, o único que teve a capacidade de filmar a alma de Mann. sobressaltado todos os juízos, incorporo a flauta mágica. Quem sabe aqui não é mesmo o paraíso.

de Alfredo Monte
Por conta de Lima Barreto, que ocupou esta coluna nas últimas semanas (ver o post Gênio da Raça neste blog), quase que se deixa escapar uma data importante: a morte de Thomas Mann há 50 anos, em 12 de agosto (ele nasceu em 1875), na Suíça, numa espécie de exílio auto-imposto diante da guinada conservadora e totalitarista (após a guerra) do seu país de adoção, os EUA, depois de perder a cidadania alemã com a ascensão nazista.

O maior dos escritores já estreou com um romance genial: Os Buddenbrooks (1901), pelo qual ganhou o Nobel (em 1929) e que apresenta  seu mais inesquecível personagem, Thomas Buddenbrook, o qual, após elevar o prestígio sócio-comercial da firma da família, descobre, com a leitura de Schopenhauer, que tudo é “maya”, ilusão. A partir daí, tudo o que é sólido desmancha no ar.                                                   

Ainda nessa primeira fase, temos o revelador Tônio Kröger.  A  visão da arte como uma atividade perigosa e suspeita, essencialmente  desagregadora, que precisa ser refreada por uma vida exteriormente burguesa, é herdada de Nietzsche, e terá lugar até em O lobo da estepe (1927), de Hermann Hesse, cujo misantrópico protagonista, gosta de viver em casas burguesas e arrumadas.

Antes da Primeira Guerra, Mann ainda publica dois textos-chaves: Sua Alteza Real, onde aprimora seu estilo rumo a um realismo simbólico, e Morte em Veneza (a melhor novela do século XX, junto com A Metamorfose, de Kafka), na qual um grande e cansado escritor deixa-se levar pela beleza de um menino/anjo-da-morte, associado ao apelo do mar, o mundo informe, tentação suprema para quem sempre lutou para criar a forma.

resenha do blog de Alfredo Monte

Desde o século XIX, proliferaram na ficção realista as histórias de famílias (na língua portuguesa, certamente nenhuma supera Os Maias, de Eça de Queirós). Qual seria a mais paradigmática? Provavelmente Os Buddenbrooks (1901), de Thomas Mann,

Dick .iníciodo   no qual uma reunião festiva comemora a inauguração da grande mansão onde a família residirá. É um início sumamente irônico, pois marca um auge da família e da firma Buddenbrook e o que vem a seguir será a precária tentativa de conservá-las nesse auge.
Após um longo e obscuro ciclo, começa em 1924 o grande período de Mann como gênio da literatura, com sua maios apaixonante realização, A Montanha Mágica, caso raro de uma obra difícil, mas carismática e popular, ao ponto de a Nova Fronteira relançar neste ano mesmo uma reimpressão e ela se esgotar rapidamente em diversos lugares. Recentemente, esse romance inigualável  e seu protagonista, Hans Castorp ganharam uma bela homenagem de Harold Bloom em Como e por que ler.

O apelo do fascismo foi diagnosticado com precisão em Mário e o Mágico (1930). De 1933 a 1943, ou seja, da vida na Alemanha ao exílio nos EUA, foram publicados os quatro volumes de José e seus irmãos. O primeiro, Histórias de Jacó, é possivelmente o texto mais bonito e virtuosístico que Mann escreveu, ao ponto de eclipsar, talvez injustamente, os outros três. É o tipo de texto que seria escolha certa para a famosa hipótese da “ilha deserta” que sempre se propõe aos leitores. O mais incrível , no entanto, é que reelaborando a fábula bíblica, ele ainda escreveu uma obra-prima como Carlota em Weimar (1939), narrativa sobre o reencontro de Goethe e a inspiradora da heroína deWerther, e na qual a alma alemã é dissecada. E também a divertida farsa hindu, As cabeças trocadas (1940), além de outra  história tirada do  Antigo Testamento: A Lei, sobre Moisés.                                                                     

Depois da Segunda  Guerra, ainda começou outro período glorioso para Mann: em 1947, ele  pôde rir por último na tola questão de ser um “artista ultrapassado”, ao publicar o moderníssimo, ao mesmo tempo sinistro e paródico, Dr. Fausto, para muitos sua obra suprema, e que realmente é a mais impressionante. O impacto da mistura de pacto com o demônio, alma alemã, música e nazismo foi tão grande que ele chegou a ser cogitado para um segundo Nobel.
Livre de qualquer amarra, ainda escreveu dois romances imperdíveis: O Eleito (1951), que disputa com Histórias de Jacó a taça no quesito criatividade na prosa e estado de graça com que foi escrito; e o incompleto (ficou só no primeiro volume) As confissões do impostor Félix Krull (1954), texto que o acompanhou a vida inteira e que representa sua incursão na “alta comédia”, aquela em que a vida é sonho e estamos no grande teatro do mundo.

Mann teve a sorte de ser esplendidamente traduzido no Brasil, especialmente por Herbert Caro e Agenor Soares de Moura. Teve a sorte de ter um admirador, Anatol Rosenfeld, que deixou ótimos ensaios sobre sua obra. Pena que as biografias sobre ele sejam lamentáveis: Nigel Hamilton, em Os irmãos Mann, procura sempre depreciá-lo, em favor de Heinrich Mann. E há uma ridícula e desonesta biografia de Donald Prater, Thomas Mann, que já é comprometida de saída pela maldisfarçada e inoportuna antipatia do biógrafo pelo biografado e pelo visível fastio que sua obra lhe causa. É realmente muito pouco para um criador tão raro e fascinante que, como se lê na capa da edição de estréia da “Entre Livros” (na qual foi o destaque), “desafia e seduz o leitor atual”. Sempre tachado de ultrapassado, Mann , como Flaubert, sempre acaba por ultrapassar, deixando para trás os detratores.

Às vezes, haverá a ilusão de que o impulso comercial e familiar que marcou esse momento será até superado É o que ocorre quando Thomas Buddenbrook, neto do chefe da família, assume a firma. Mas o subtítulo é implacável na sua exatidão: Decadência de uma família.  Logo Thomas perderá a energia que o impulsionava a passar por cima dos elementos “desonrosos” (o comportamento bizarro do irmão, Christian; os infelizes, quase burlescos, casamentos da irmã, Antonie, e da filha desta, Erika)  para manter os Buddenbrooks no topo da vida social e comercial de Lübeck, embora a própria cidade (um importante porto outrora) já esteja decadente.

Thomas também contribui para que a solidez se desmanche: apaixona-se e casa-se com a exótica Gerda (um casamento dos mais estranhos, diga-se de passagem, e que configura um dos enigmas do livro), cuja paixão pela música a torna indiferente aos empreendimentos do marido. Essa paixão é herdada pelo único filho do casal, Hanno,que supostamente deveria continuar a obra do pai.

Não é o que acontecerá, porém. Nesse sentido, há, em Os Buddenbrooks, uma das cenas mais extraordinárias e arrepiantes  da literatura: como se viu, Thomas é obcecado em continuar a obra e a tradição de seus antepassados. Um símbolo dessa continuidade é a Bíblia na qual são anotados todos os acontecimentos relevantes da família. Um dia, Hanno, ainda criança, vê a Bíblia onde está registrado seu nascimento e faz com uma pena de ouro “uma ela e limpa linha dupla através da folha inteira”. Interpelado pelo pai, furioso por causa de tal gesto, Hanno responde: “Eu pensava… pensava… que não vinha mais nada”. Temos, então, de forma aparentemente inocente, a negação do sentimento de sucessão, de continuidade, de uma geração passando a tocha para a seguinte.

Thomas Buddenbrook é o centro do romance. Para ser franco, é o meu personagem favorito na literatura inteira. Consegue esse feito incrível: fazer com que nos interessemos pelo destino de uma firma burguesa da Alemanha oitocentista e por uma personalidade “careta”, ferrenhamente ligada aos valores mais reacionários e conservadores que possamos imaginar. Thomas é um personagem tão forte que não é de admirar que o interesse de Os Buddenbrooks decaia bastante após a sua morte prematura(tem-se ainda sessenta páginas onde Hanno ocupará o centro da narrativa até que ele mesmo morra). Thomas (o autor, não o personagem) escreveu muitos textos insuperáveis após essa sua obra-prima publicada aos 25 anos (ele morreu com 80). Todavia, nunca mais criou personagens tão memoráveis, embora tenha chegado perto, quanto Thomas Buddenbrook e sua irmã Antonie (também muito citada, e é uma das marcas da decadência,como senhora Permaneder, durante a narrativa). Mesmo quando lembramos de Hans Castorp, Settembrini, Mynherr Peepkorn (A montanha mágica), a senhora “conselheira” Kestner (Carlota em Weimar), Jacó e José (José e seus irmãos)ou Felix Krüll (As confissões do impostor Felix Krüll), não encontramos quem supere os inesquecíveis irmãos Buddenbrooks.   Para se ver como Thomas (o personagem, não o autor) vive intensamente na memória do leitor, basta citar as seguintes palavras de Marguerite Yourcenar: “…eu não penso nunca sem ficar emocionada em Thomas Buddenbrook, depois de uma vida convencional e desencorajada, descobrindo ao mesmo tempo em Schopenhauer o sentido do desespero e, talvez, a paz mais elevada”. A autora de Memórias de Adriano, a qual escreveu um magnífico e fundamental ensaio sobre Mann (“Humanismo e Hermetismo em Thomas Mann”, em Notas à margem do tempo), refere-se à leitura que Thomas  (o personagem, não o autor), pouco antes de  morrer, faz de O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer, o embasamento filosófico de Os Buddenbrooks. A leitura desse livro foi decisiva também para o jovem Thomas (o autor, não o personagem). Ele mesmo o afirmou: “Só se lê assim uma vez na vida, nunca mais acontece de novo”.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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