Encostado ao rochedo, Tibério gozava da displicente tranquilidade que tanto desejara. À sua frente, abundantes parreirais demonstravam a bondade do boêmio Baco, deus do vinho, e ele agradecia tamanha prodigalidade. Observava, à pouca distância, as frequentes e pequenas corridas e paradas, e o balançar repetido da cabeça de um belo lagarto azul, assinalando aos competidores de que aquele terreiro já tinha galo.(1) Sobre sua cabeça, acabara de passar velozmente um falcão peregrino e despejara substanciosa e malcheirosa descarga, quase o atingindo. Ao longe, lulas voadoras, em belos voos, tentavam safar-se dos cachalotes e outros perigosos predadores. Aos seus pés, como a prestar-lhe homenagem, o manso Mar Tirreno azul e lindo, envolvido por um não menos belo céu azul. Ele encontrava-se na ilha de Capri, no golfo de Nápoles, lugar que escolhera para terminar seus dias num repouso merecido. Já contava setenta e cinco anos e os prazeres do mundo parece que davam lugar a ideias mais modernas e mais tranquilas. Por isto, desde vinte e sete recolhera-se às suas casas de praia na Ilha preferida.
Muito lutara e sempre vencera os inimigos. Tinha sido fácil, porque conhecia a arte da guerra. Mas contra a traição dos amigos e familiares era diferente, porque ninguém jamais espera ser traído por quem comunga da sua felicidade. Mas acontece. Assim como Seguro morreu de velho, por via das dúvidas era melhor afastar-se das suntuosas intrigas palacianas do que esperar para ver.
Corria o ano de trinta e quatro e ele recordava do caso ocorrido com um certo nazareno no ano anterior, em cuja condenação Pilatos estava envolvido até os ossos. Um julgamento atabalhoado, resultando numa condenação injusta. Não era porque ele fosse judeu que a Justiça Romana não lhe proporcionasse um julgamento justo. Agora aquela senhora viera pedir-lhe justiça. Ela nem condenara o Governador. Até explicara que ele tentara evitar a condenação.
– Augusto! dissera-lhe. Sou Maria, de Magdala,(2) e vim recomendada por minha amiga Cláudia Prócula, esposa do Governador Pôncio Pilatos, da Judeia. Vim pedir-vos justiça, pois algo terrível ocorreu em Jerusalém, que depõe contra o Direito dos Povos, aplicado por Roma nas suas províncias. Um bom homem foi condenado à morte, sem que haja cometido falta alguma. Apenas por falsas acusações dos poderosos – políticos e religiosos que temiam sua influência.
– Já te conheço, senhora, através de relatos de empresários do ramo de peixe de sua cidade, onde te consagras ao setor de hospedaria, não é verdade? É bom que se diga que o peixe seco de Magdala, especialmente a tilápia ao molho de vinho branco, é muito apreciado em todo o Império, especialmente em Roma.
Quanto ao teu pedido, acaso tu te referes a Jesus de Nazaré?
(1) – já tinha galo, isto é, já tinha dono. Os lagartos comunicam-se por meio de movimentos da cabeça.
(2) – Maria de Magdala – Maria Madalena
– Sim, senhor. Ele passou a vida ajudando os outros, livrando as pessoas dos seus
sofrimentos e aconselhando-as para o bem. Isto vos asseguro, pois eu e outras mulheres estivemos unidas a ele por verdadeiros laços de amizade nos últimos três anos, provendo-o e aos seus doze seguidores de todas as necessidades do dia a dia.
– Sei de quem se trata, pois recebi carta do meu amigo senador Públio Lêntulo, discorrendo sobre ele, na qual dizia que esse Jesus possuía grandes virtudes e que vivia ressuscitando mortos e curando enfermos. Sem ter estudado, sabia todas as ciências…
Depois de ligeira pausa, continuou.
– Mas diz-me: que acusações foram feitas contra ele para que Pilatos o condenasse?
– Ó, divino Augusto. Depois de apresentarem falsos testemunhos, inventaram mais uma calúnia: o de que ele dissera que não se devia pagar o tributo a vós, ó César. Mas eu sou testemunha de que, quando alguns fariseus e herodianos quiseram apanhá-lo em falta para acusá-lo e lhe perguntaram se era justo pagar o tributo, ele pedira uma moeda, tomara-a na mão, perguntara de quem era a imagem e respondera: dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
– Nisto ele foi muito inteligente, pois, caso dissesse o contrário, estaria atirando o povo contra o Império, podendo provocar o caos social. Desta forma, estaria configurado o crime de sedição, sujeitando-o à pena de morte.
Após um ligeira pausa:
– Mas lembra-te de mais alguma acusação séria?
– Ó, César! Fora pura inveja, pois tudo o que ele fazia era consolar o povo e mantê-lo em paz, que é o que mais Roma deseja.
O Governador conduzia o julgamento com certa indiferença, mas mostrava tendência a inocentá-lo, a pedido de sua esposa Cláudia. A certa altura, perguntou-lhe sobre realeza e ele respondera que nascera rei, mas que o reino dele não era deste mundo. Só estava aqui para dar testemunho da verdade. Lembro que, ao falar em verdade, Pilatos disse que não conhecia o termo e afastou-se por um momento.
Inocentemente ele se declarara rei frente a Pilatos. Não fora petulante. Apenas, em resposta ao governador, que lhe perguntara se ele era rei, dissera que sim, mas explicara que seu reino não era deste mundo. Entretanto, aproveitando-se daquela declaração, os poderosos acusadores insuflaram o povo dizendo: ele se declarou rei e quem se declara rei é contra César! Se o soltas, te denunciaremos a Tibério!
Sei bem que o fato de declarar-se rei não indicava ser contra César, pois o próprio Herodes, o Grande, fora rei ao tempo de Augusto e era-lhe seu amigo. Mas nesse momento, o governador fraquejou, com medo de perder o cargo e lavou as mãos para o caso.
– O réu se declarara rei! Mas que rei, se nem tropas nem dinheiro tinha? E se seu reino não era deste mundo que mal poderia trazer ao Império? Infelizmente, aos políticos da tua terra, ó senhora, faltaram a capacidade de reflexão, bom senso e inteligência.
– Parece que o Direito não foi feito para os bons, mas para os seres ordinários, ó Augusto. A condenação do Mestre foi uma farsa. Há quem diga, inclusive, mancomunada entre o Governador e o Sumo Sacerdote. Se assim não fora, por que tudo ocorreu na surdina, no dia seis de abril? Preso à noite, levado à casa do Sumo Sacerdote, ao invés de à sala do Templo a isto destinada, submetido a interrogatório por Anás – pessoa não autorizada, pois há três anos já não era Sumo Sacerdote, julgado e condenado à morte no mesmo dia, o que era proibido. Um ato injusto, por que ele era inocente, e ilegal, porque não foram seguidos os trâmites que o Direito exige, inclusive não se lhe dando o direito de defesa.
Por isto, ó Augusto, vim pedir-vos justiça: que, em defesa da verdade, seu nome seja reabilitado nos documentos do Império, de forma que nada conste que o desabone quanto à sedição, pois ele só ensinou a amar.
Tibério, ouvindo as explicações de Maria e aquele pedido, pensava:
– Um bom homem, preso à noite, sem culpa formada, levado para lugares impróprios, injuriado por pessoas incompetentes, acusado de crimes que não cometeu, julgado sem testemunhas legais e condenado a uma pena errada e executado no mesmo dia da condenação. E o pior de tudo: com a covardia da lavagem das mãos, entregando o réu à fúria do povo, massa de manobra instigada pela teocracia judaica. Esta não é a Justiça Romana. Faz bem o quadro da personalidade de Pilatos. Eu devia tê-lo transferido logo após a primeira encrenca que me aprontou, colocando minhas imagens no Templo de Jerusalém, contrariando os costumes e acordos romanos no trato com as províncias. E ainda me aprontará mais, estou certo. Ordenarei, pois, a Lúcio Vitélio, meu legado na Síria, que me mande Pilatos de volta, caso cometa mais alguma arbitrariedade.
E, voltando-se para Maria Madalena:
– Está bem, senhora. Desde vinte e seis não vou a Roma. Encontro-me neste maravilhoso lugar de paz para fugir de influências negativas e evitar os perigos que o Poder apresenta. Livrei-me até de minha mãe, que queria, a todo momento, intrometer-se nos negócios do Estado. Mas mandarei decreto ao Senado, versando sobre o assunto. Minha ausência em Roma aumenta meu poder na pessoa de quem lá deixei e que é fiel cumpridor das minhas ordens.
Tibério sempre fora tímido e reservado. Apesar de ter uma saúde quase perfeita, aquela calvície, que só lhe poupara uma porção de cabelos na nuca e as terríveis úlceras na face, obrigando-o a viver com o rosto coberto de emplastros, impedia-o de aparecer em público. Além disto, era míope e mais se parecia um gato, enxergando muito bem à noite, com aqueles olhos de cores variadas.
De mal com o mundo, apresentava-se depressivo, parecendo ser o mais triste dos homens. Fora criado por Augusto, (3) é bem verdade, mas era órfão de pai vivo, pois este fora forçado a divorciar-se de sua mãe para ela casar com Augusto que havia caído de amores por ela e com quem convivera cinquenta e um anos.
(3) – Augusto – Primeiro Imperador Romano.
Seu auto exílio na ilha, apesar da tranquilidade que lhe proporcionava e de dar-lhe momentos de indizível prazer ao apreciar a bela natureza do lugar, trazia-lhe também tristes lembranças. Recordando os motivos que o levaram a tomar a decisão do isolamento social, vieram-lhe à mente todos os infortúnios conhecidos, desde o assassinato de Júlio, o César, por seu filho Brutus,(4) seu auto exilio em Rodes, trinta anos atrás, para não denunciar de adultério a esposa Júlia, filha de Augusto, e muitas outras lamentáveis reminiscências, até mais recentemente as possíveis maquinações de Lívia, sua mãe.
Seu governo mesmo não seria resultante de alguma tramoia dela? Não corriam rumores de que a morte dos netos de Augusto Caio César e Júlio Cesar, filhos de Júlia, a Velha, com Marco Vipsânio, legítimos sucessores do Imperador, não teriam um dedinho de Lívia, para que ele próprio passasse a ser herdeiro do trono?
E a morte de Augusto não teria sido antecipada por ela para apressar sua posse?
E os atos prepotentes de Augusto? Este, apesar da amizade que tivera a Marco Vipsânio, pai de sua esposa, após a morte deste não o obrigara a divorciar-se de sua amada Vipsânia para casar-se com Júlia, a Velha, sua filha, só para satisfazer seus interesses pessoais?
Ele próprio não maquinara a morte de Germânico, seu sobrinho, em outubro de dezenove? A morte deste, por envenenamento, pelo governador da Síria, não fora induzida por ele, com inveja de sua popularidade, receio de sua influência ou para não competir com Druso, seu filho na herança do trono? E, para completar a ignomínia, sendo acusado de mandante do crime pela esposa de Germânico, não mandara assassinar os filhos Nero César e Druso César e exilar Agripina que o acusara?
Os seus próprios crimes, tal qual Tisífone (5), perseguiam-no e não lhe davam paz. Depois da morte do seu filho Druso, em vinte e três, aparentemente em consequência de ter dado um soco em Sejano,(6) ele resolvera tomar aquela decisão. Sejano era um companheiro de fé e irmão camarada de longas datas. Não era possível que tivesse culpa na morte do seu filho. Mas o caso não fora devidamente esclarecido. E se ele estivesse ensejando sua ascensão política? Já não solicitara a mão de Lívila, filha de Druso, seu irmão, tentando entrar para a mais alta nobreza romana? Era melhor confiar, desconfiando. Por isto, depois do casamento de Cláudia Prócula com Pôncio Pilatos em vinte e seis, delegara-o para a Judeia e se afastara para a Campânia, em excursões de inspeção, enquanto se decidia pelo isolamento social na ilha.
Quanto a Sejano, o caso já estava encerrado. Ele o traíra e fora devidamente julgado, condenado e executado.
(4) – Brutus, senador romano, tido por filho ilegítimo de Julio César.
(5) – Tisífone – na mitologia grega, era a deusa vingadora dos assassinatos, que açoitava os culpados e os enlouquecia.
– (6) – Sejano – Prefeito da Guarda Pretoriana desde 14.
Parecia que uma força superior forçava Tibério a continuar recordando e ele pensava:
Nas suas campanhas pela Ilíria, próximo à Grécia, e mais recentemente com mais intensidade, já não ouvira que os gregos, ou pelo menos os atenienses, inteligentes e
filósofos, estavam adorando mais um deus – um tal Deus Desconhecido?
E também não lhe chegavam constantemente notícias da Judeia falando de multidões que andaram seguindo um tal Rabi e que este operara verdadeiros milagres? Seria este o Deus Desconhecido dos gregos?
Por que lhe apareça aquela sensação de que devia proibir os jogos de gladiadores que causavam tanto sofrimento aos homens e aos animais, mantendo a condenável política do pão e circo? E para que tanta glória e poder, como a dele, se só serviam para atiçar a inveja dos que não podem ver a felicidade alheia e aumentar o medo de traição até dos próprios familiares?
E por que ele, o Imperador, mandara construir doze vilas de casa naquela ilha? Teria sido em homenagem aos doze deuses do Olimpo ou aos doze seguidores de Jesus de Nazaré?
Desconfiado de que algo de mau lhe pudesse ocorrer, algum tempo atrás Tibério solicitara de seus representantes, nas diversas províncias, que selecionassem presos de comportamento tranquilo e lhe enviassem determinada quantidade, pois desejava fazer uma reforma na administração doméstica, substituindo seus auxiliares.
Havia levado para a Ilha numerosos serviçais, oriundos da Judeia e aprisionados por provocarem desordens. Todos apresentavam-se pacíficos, alegres e viviam como se fossem irmãos de mesmo pai e mesma mãe. O motivo das prisões tinha sido por confusões causadas porque se reuniam no Templo e nas sinagogas para defender a causa de um tal Cristo, que diziam ser o filho do Deus deles. Quando os ouvintes não aceitavam suas verdades, começava uma altercação, intervindo a guarda romana e prendendo, regra geral, os defensores do tal Cristo, por serem em número inferior e acusados de iniciadores dos tumultos. Coisa sem importância. Mas entre si viviam em paz. E paz era tudo de que mais ele precisava.
Por isto aquelas frequentes reuniões nas suas casas da Ilha, com aqueles cantos e a presença de tantas crianças, das quais procuravam seguir o exemplo para entrarem no céu, como diziam. Coisa de judeu.
Mas não é verdade que, por isto, seus inimigos em Roma já o acusavam de sadomasoquismo e pedofilia, quando o que se praticava lá era a autoflagelação para desconto das faltas que diziam ter cometido e o cuidado com as crianças?
Aprofundando-se cada vez mais em bons pensamentos, surpreendeu-se, perguntando-se:
Estaria eu, o Imperador dos Romanos, o dominador do mundo, convertendo-me a uma nova religião?!
Vírman
Tobias Barreto/SE,
04/08/2020