TRATEMOS BEM OS NOSSOS FILHOS

No início da década de 80, eu morava em Fortaleza, num conjunto habitacional chamado Cidade 2000.

A Cidade 2000 foi construída na década de setenta e trazia, na concepção da engenharia de então, grandes novidades no desenho arquitetônico, talvez por isso foi denominada de Cidade 2000, em referência ao final do século e milênio.

As casas foram construídas alternativamente viradas para lados contrários. Quer dizer, a frente da minha casa ficava à direita e à esquerda extremando com os muros – garagens – das duas que ficavam aos lados.

O meu vizinho da direita era o senhor Murilo, casado com dona Socorro e pai de duas filhas: Kátia e Mariana. Kátia à época tinha mais ou menos uns sete anos e Mariana uns quatro. Sr. Murilo tinha uma Brasília bege e uma moto Honda azul.

Ele era super zeloso com aqueles veículos, trazia-os sempre lustrados, arrumados e muito limpos. As crianças sabiam e, por essa razão, também tinham o maior cuidado e zelo com o carro e a moto do seu pai.

Certo dia, presenciei a seguinte cena: Sr. Murilo, pensando em economizar combustível, resolveu levar, de moto, Mariana para a escola. Ele tirou a moto da garagem, colocou-a rente à calçada para que ficasse mais fácil arrumar Mariana à sua frente, sentadinha no banco, próxima ao tanque de gasolina.

Mariana de cima da calçada seria, como de fato foi, conduzida pelo braço direito do pai para o assento da moto, à frente do condutor, por questões de segurança. Sem querer, Mariana se esqueceu de levantar um dos pezinhos, o que fez com que a sua sandália arrastasse no tanque da moto, provocando, naturalmente, alguns riscos na pintura.

Nesse instante, seu Murilo, percebendo o estrago feito, ficou possesso. Desapeou da moto, retirando a menina com certa brutalidade, praguejando muito, culpando a criança pelo ocorrido. Criou, enfim, um clima, de tal forma que Mariana, sem entender o que estava acontecendo, começou a chorar e não quis mais ir para aula…

A mãe, dona Socorro, tentou interferir, mas recuou, pois sabia que a sua intromissão só pioraria a situação. Ele também, muito zangado, disse esbravejando para a criança: nunca mais encoste nessa moto, viu? Nunca mais! Fique longe dela, viu? Você é um desastre total… Não toque mais na minha moto, nunca mais, nunca mais… E, muito encolerizado, ligou a moto e saiu em disparada, tendo antes, dito para a mulher que não ia mais levar ninguém, sobretudo Mariana, ela nunca mais andaria na sua moto…

Mariana, repito, chorando muito e sem entender direito tanta violência, também não quis mais ir à escola.

Dona Socorro, que trabalhava na banca de revista localizada na pracinha do Conjunto Habitacional, de propriedade do Sr. Magalhães, diante daquele desacerto, naquele dia, não pôde comparecer ao trabalho, pois teve que ficar com Mariana, tentando remendar o estrago feito pelo pai na alma daquela infante de apenas quatro aninhos.

O tempo passou, e sete anos após aquele episódio, eu vim morar em Sergipe. Desde então, tive pouco contato com o Sr. Murilo, nestes últimos vinte anos. As únicas noticias chegavam-me através de parentes meus que ficaram residindo naquela casa onde eu morava.

Há uns cinco anos atrás, se abateu sobre aquela família uma desgraça. Dona Socorro faleceu, e dois anos depois, Sr. Murilo teve um AVC de grande intensidade que o deixou com bastantes seqüelas: dificuldade de locomoção, de fala e quase cego. Kátia a filha mais velha casou-se e, naturalmente, constituiu novo lar e deixou, por conseguinte, a casa paterna.

Adivinhem quem está, atualmente, tomando conta da casa e do Sr. Murilo? Acertou quem disse Mariana, aquela mesma que teve naquele dia fatídico, do início da década de oitenta, aos quatro anos de idade, uma agressão tão irracional que talvez tenha mudado toda a trajetória de sua vida. Ela nunca mais quis freqüentar escola e o pouco que fez, a partir daquela época, foi, ironicamente, para satisfazer os sonhos do pai que era vê-la formada. Talvez ele não tenha se dado conta de que foi, talvez, o único, responsável pela desilusão de Mariana, quando o assunto era estudar. 

Sem comentários…

Só para encerrar, eu estive recentemente na casa deles, pude perceber a triste situação em que vivem, e o que é o amor de uma filha.

Sabe. Tive vontade de perguntar ao Sr. Murilo onde estava a sua MOTO HONDA AZUL, que representava tanto, naquela época, chegando a ser mais cuidada e importante do que a sua filhinha Mariana de apenas quatro anos.

Claro, não perguntei.

Deixo aqui a indagação: Será que algum de nós não teve ou tem ainda, uma moto ou qualquer outro objeto que valoriza muito mais do que o próprio filho?

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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