Talita Emily Fontes
Graduanda em História pela UFS
Bolsista PET História/UFS
Orientador: Prof. Dr. Francisco José Alves
O dia nasce em Moscou, mas não é possível sentir um mísero raio de sol. O frio é constante, as mãos logo entorpecem, e se não houver cuidado, orelhas e nariz rapidamente congelam. Entretanto, isto não impede o intenso movimento nas ruas. Neste alvorecer de 1º de maio, toda uma massa segue ordenadamente até a Praça Vermelha, postando-se junto ao túmulo de Lenin, e tantas outras personalidades ali sepultadas.
Na companhia dos mortos, os viventes apertam os olhos e se aglomeram para enxergar uma única figura, que ao lado de outros oficiais, está junto a muralha do Kremlin. Sentado e aguardando o inicio dos desfiles encontrasse o camarada Joseph Stalin.
Estamos em 1951, e ao contrário do que veio a ocorrer alguns anos depois, a popularidade do estadista soviético estava nas alturas. A Guerra Fria (1945-1991) dava seus primeiros passos, e a figura sisuda do líder, estampada em cartazes e bandeiras, dizia, sem precisar expressar uma só palavra, que a União Soviética permaneceria firme em seus ideais.
Às dez da manhã o grandioso desfile tem início. Imensos quadrados marcham em perfeita sincronia. Estudantes e veteranos, cossacos montados em imensos cavalos. Inúmeras máquinas de guerra. Este é o dia da URSS exibir a sua força e organização. Um ritual que se desenrolará até o cair da noite.
No meio de tantos olhos atentos, pequeno e munido de um binóculo “clandestino”, está um alagoano. Cheio de admiração, encontramos Graciliano Ramos. Mas o que o escritor brasileiro, tão conhecido pelos seus doloridos sertões, fazia em meio as geladas terras soviéticas?
Sabemos que a Guerra Fria, desde seus primórdios, desencadeou um incessante conflito ideológico. Nunca o dito “a propaganda é a alma do negócio” fez tanto sentido. Estados Unidos e União Soviética arquitetavam estratégias para conquistar novos simpatizantes, utilizando-se dos mais diversos veículos. Da literatura a Hollywood.
Desta forma, a potência comunista elaborou uma tática no mínimo interessante. Financiou viagens para milhares de estrangeiros, que variavam de militantes a curiosos, para conhecerem as “maravilhas” de um sistema aonde a “desigualdade havia sido abolida”.
Obviamente, como toda a propaganda o é, nestes tours as mazelas do duro regime stalinista eram varridas para debaixo do tapete. Todas as rachaduras eram devidamente disfarçadas e escondidas.
Várias comitivas brasileiras foram enviadas. Médicos tiveram seus estudos financiados; escritores, como Jorge Amado, tiveram seus livros traduzidos para o russo, e a lista segue extensa. Isto sem contar com a publicação de vários relatos dos brasileiros que realizaram estas excursões.
E no meio de tantos visitantes, encontramos Graciliano Ramos, que foi convidado para participar dos festejos de 1º de maio e passar um mês realizando visitas a várias cidades de domínio soviético. Com ele estavam cerca de trinta outros brasileiros, que compunham uma pequena porcentagem das dezenas de outras comitivas de diversos países, que também estavam presentes para os mesmos fins.
O brasileiro era militante do Partido Comunista do Brasil, e em suas observações contidas na obra Viagem: Tchecoslováquia – URSS, percebermos o seu entusiasmo perante todo um sistema que lhe parecia ser tão sólido, ao mesmo tempo em que toda esta perfeição lhe causava certo desconforto.
Mas a grandiosidade dos desfiles que presenciou conseguiu lhe comover. Ao observar a distante figura de Stalin, não fez questão de disfarçar a sua admiração. Para o alagoano, era impossível um brasileiro, acostumado a chacotear seus políticos, entender o sentimento de quase devoção que ligava o povo russo ao líder “José”.
Seria um erro recriminar o entusiasmo vindo do escritor. Menos de um ano após esta excursão, Mestre Graça (como era chamado pelos amigos) veio a falecer, sem nem ter ideia da existência dos Gulags e das milhões de almas que o regime stalinista ceifou.
Graciliano foi um homem de seu tempo, afinal. E semelhante alguns de nós, situados em pleno século XXI, também tinha a esperança de viver em um mundo onde as “desigualdades seriam abolidas”, e onde os cidadãos finalmente poderiam viver com dignidade, sem exceções.