Um arcebispo quase subversivo

O papa Bento XVI condena a Teologia da Libertação. Mantendo-se fiel a um documento que ele mesmo assinou, há mais de 25 anos, como então Cardeal Ratzinger, ele condena a forma de fazer teologia utilizando “teses e metodologias provenientes do marxismo”, que traria como conseqüências para a Igreja “rebelião, divisão, dissenso, ofensa, anarquia”. O pontífice admite que a Teologia da Libertação não seja um problema do passado e as terríveis consequências dessa aventura libertária da Igreja do Brasil “fazem-se sentir ainda” e que ainda se encontram nas comunidades diocesanas. Esse é um debate difícil, por se tratar de uma questão ideológica.

O mesmo papa Bento XVI já autorizou o Vaticano a fazer um estudo sobre a liberação do uso da camisinha por casais devidamente unidos pelo sacramento, desde que um dos parceiros esteja contaminado pelo vírus HIV. A recomendação foi entregue à Congregação para a Doutrina da Fé, mas por enquanto a posição oficial da Igreja permanece a mesma: proíbe os católicos de utilizar qualquer método contraceptivo, mesmo que para evitar a transmissão do vírus HIV entre parceiros casados, e recomenda a fidelidade dentro do casamento ou a abstinência sexual como a melhor maneira de combater a Aids.

Parece pouco, mas é um avanço para uma Igreja Católica que vive dando demonstrações não só de conservadorismo renitente, mas de descompasso com o tempo. Acontece que, enquanto os cardeais discutem o sexo dos anjos, os adolescentes do mundo cristão não saem de casa sem uma camisinha no bolso, muitas vezes colocada pela própria mãe. É melhor prevenir do que remediar. E quem não se previne pega doenças venéreas, inclusive Aids, ou acaba purgando uma gravidez indesejada. Afinal, como diz o filósofo Lula, sexo é bom e quase todo mundo gosta.

É da Igreja ser conservadora. É da sua essência e disso depende a sua sobrevivência. É dogmático. E dos temas profanos, sexo é o mais carregado de tabu. Vem da concepção do próprio Cristo, que nasceu de uma virgem etc.
Mas pelo menos em questões sociais, houve tempos em que a Igreja foi, se não ousada, mais avançada. Pelo menos no Brasil. Pelo menos em Sergipe. Uma boa época foi o começo dos anos 60.

A Igreja Católica estava sintonizada com a efervescência da época. O mundo passava por mudanças e a juventude brasileira dava sinais de querer mais do que mudar comportamentos sociais. Havia grupos jovens ligados à Igreja e havia um arcebispo ávido por transformações. Era D. José Vicente Távora, criador e principal dirigente do Movimento de Educação de Base (MEB), impulsionador do processo de conscientização em Sergipe, que inovou alfabetizando através da rádio Cultura, também criada por ele em 1959. “O MEB ensinou muitas pessoas a ler e escrever, através das aulas de português, matemática e legislação que eram transmitidas pelo rádio”, lembra o jornalista Gilvan Fontes, que passou quase toda a vida profissional como noticiarista, principalmente na rádio Cultura.

“O MEB incorporou milhares de pessoas em atividades particularmente criativas, inclusive jovens universitários sequiosos de mudanças, contribuindo decisivamente para o processo de mobilização social. Apesar da tolerância com as manifestações de esquerda e com as reações de direita, D. Távora permaneceu como a principal autoridade do movimento até a véspera do golpe de 1964”, lembra Ibarê Dantas, no livro Os partidos políticos em Sergipe (1889-1964).

“Atingindo cerca de 12 mil pessoas em perto de 460 localidades e 57 municípios e contando com quase 550 monitores orientados por 19 supervisores, nenhum movimento, em tempo algum em Sergipe, teve tanta influência, no sentido de proporcionar uma nova consciência aos trabalhadores rurais”, prossegue o historiador, acrescentando que D. Távora acabou sendo perseguido pelo regime militar, denunciado como comunista.

Em 1962, quando Jânio Quadros, candidato a presidente da República, esteve em Aracaju, D. José Vicente Távora propôs-lhe um projeto de educação pelo rádio, a exemplo da experiência iniciada em Natal (RN) por D. Eugênio Sales. Aceita a proposta, quando o candidato assumiu a presidência, o convênio foi firmado com o apoio da CNBB. Assim surgiu o MEB. O governo federal entrava com os recursos e a Igreja com a administração. Os primeiros sindicatos agrários, de inspiração cristã, nasceram em Sergipe sob a inspiração de D. Távora.

Quando aconteceu o golpe de 31 de março de 1964, a Igreja ficou dividida. “Uma ala mais ligada ao bispo auxiliar, D. Luciano Cabral Duarte, zeloso cooperador do Estado Autoritário, revelou-se simpatizante da nova ordem. Dentro dela, incluem-se alguns sacerdotes e até o bispo de Propriá, D. José Brandão de Castro, que posteriormente se manifestaria intrépido defensor das causas dos trabalhadores rurais e dos índios. A outra ala, vinculada ao arcebispo D. José Vicente Távora, recebeu o movimento como um grande retrocesso político. O próprio arcebispo, promotor do MEB, foi ameaçado de prisão. Com o fogo cruzado dos delatores que abominavam sua obra, além de submeter-se a depoimentos irritantes, esteve por vários dias praticamente confinado no Palácio Episcopal, escapando de maiores hostilidades por interferência do general Juarez Távora, seu parente. A campanha de educação popular, vista pelo patronato como a obra mais nociva à boa ordem, seria severamente afetada”, escreve Ibarê Dantas (A Tutela Militar em Sergipe – 1964/1984).

Conta o historiador que, hostilizado pelas autoridades militares locais, D. Távora escreveu ao general Juarez Távora e este enviou a carta ao comando do 28º BC, que mandou chamar o arcebispo, passando-lhe forte reprimenda. Mas, a partir daí, as ameaças teriam diminuído. No entanto, o MEB teria vários de seus funcionários detidos e seria reorientado sob a supervisão de D. Luciano Cabral Duarte. Posteriormente, o MEB se transformaria em “mera linha auxiliar do Mobral”.

O pernambucano D. José Vicente Távora já era bispo da capital quando, em abril de 1960, o papa João XXIII criou as Dioceses de Estância e Propriá e a Província Eclesiástica de Aracaju. Foi, portanto, o primeiro arcebispo metropolitano de Aracaju. E o foi até quando morreu, no dia 3 de abril de 1970. Há 41 anos.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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