Numa certa quinta-feira de janeiro de 2003, mais precisamente no dia 9, quatro colegas adolescentes, na saída da escola, resolvem fazer um exercício rápido de história. A ideia é que cada um diga de que lugar veio a sua família.
São três adolescentes brancos e um negro. O primeiro menino branco, diz “minha avó era espanhola e o meu avô italiano”. Outro garoto branco, diz logo em seguida, “meus bisavós eram portugueses. Até hoje temos o brasão da família lá em casa”. O terceiro, “minha família toda veio da Holanda”. Então, todos se viram para o jovem negro e perguntam: “e sua família, veio de onde?”. Cabisbaixo, o menino responde: “de algum lugar da África”.
Ao chegar em casa, o menino negro vê na televisão que, naquele mesmo dia, o Presidente da República havia sancionado uma lei obrigando o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio. Então, o menino logo pensa, “com essa lei, eu vou conhecer mais sobre a história da África e dos povos de lá. Essa lei vai me ajudar a descobrir, em meio aos 54 países e às milhares de tradições culturais, manifestações e dialetos, de onde, exatamente, veio a minha família”.
A curiosidade do menino nada mais era que a necessidade de conhecer mais sobre a sua própria história, sobre os seus antepassados, afinal a África, era tão mal explicada pelos livros e professores que, muitas vezes, parecia mais um país do que um continente.
Mas os anos vão passando e, com a proximidade do vestibular, o adolescente só consegue se concentrar nas fórmulas, datas, nomes e lugares que, certamente, cairão nas provas.
Eis que dez anos depois de sancionada a Lei, o menino, já adulto, lembra que não ouviu sequer uma palavra diferente sobre a história ou cultura africana na escola. Lembra que os professores sabiam bem sobre História Grega, História Romana, sobre Napoleão Bonaparte, Hitler, mas nada sobre a África.
Ele também sabia que o desconhecimento dos seus professores não era culpa deles, já que, quando esses eram estudantes, também não ouviram nada sobre o assunto.
Mesmo na faculdade, onde agora cursa licenciatura em História, o rapaz negro não tem a oportunidade de estudar a história da África e dos africanos, as contribuições da população negra nas áreas social, econômica e política do país. Apenas uma disciplina optativa é oferecida em todo o curso, ainda assim, neste semestre, não tem professor para ministrar os conteúdos.
Então, por interesse próprio, o rapaz resolve estudar e pesquisar sobre a luta dos povos negros na África e no Brasil e descobre que aquela Lei 10639 – sancionada há uma década – mais que boa vontade dos governantes, era resultado de anos de lutas e pressões do movimento negro, na busca por uma educação anti-racista e que não tenha a Europa como centro do mundo.
Ele chega a ler que a reivindicação pela obrigatoriedade do ensino da cultura negra e o do papel do negro em nossa sociedade constava, por exemplo, na declaração final do I Congresso do Negro Brasileiro, promovido pelo Teatro Experimental do Negro, em 1950.
Em outros livros, o rapaz toma conhecimento que um dos principais intelectuais negros da história do Brasil, Abdias do Nascimento, usava a imprensa alternativa para defender o ensino da história e cultura africanas como necessário à superação da exclusão sócio-racial. Em voz baixa, na biblioteca da universidade, ele lê um questionamento de Abdias, encontrado numa edição do jornal Quilombo: “Se consciência é memória e futuro, quando e onde está a memória africana, parte inalienável da consciência brasileira?”.
A história de Abdias do Nascimento e de outros líderes e intelectuais negros como Milton Santos, Zumbi, Dandara, João Cândido, Lélia Gonzalez, Lucas Dantas, Manuel Faustino, João de Deus, Luiz Gama, inspira o rapaz a pesquisar mais, conhecer a sua história e o porquê da lei, que ele viu nascer há dez anos, quase não sair do papel.
E o rapaz toma consciência de que um dos principais problemas para a efetivação de uma importante política afirmativa – como é essa lei – é a ausência de prioridade que a temática racial tem na agenda pública. Ele toma como exemplo os números da Lei Orçamentária Anual do ano passado, na qual consta que apenas 11% dos recursos previstos para projetos educacionais de promoção da igualdade racial em escolas do ensino fundamental foram utilizados. Dos recursos destinados às universidades para este mesmo fim, apenas 5% foram usados.
Ainda pesquisando sobre o tema, o rapaz sabe que, em 2008, a Lei 11639 foi alterada e atualizada pela Lei 11.645, incluindo também como obrigatório o estudo da história e cultura dos povos indígenas.
Então, o rapaz volta pra casa, e em sua cama reflete que, se insistir em não tratar a questão étnico-racial de forma efetiva na educação, o Estado continuará colaborando para que o povo brasileiro desconheça a sua memória, a sua história e, por isso, a negue tanto.
E, antes de dormir, como uma oração, ele repete o questionamento feito por Abdias do Nascimento: “Se consciência é memória e futuro, quando e onde está a memória africana, parte inalienável da consciência brasileira?”.