Um poeta a descobrir

A poesia de Enock Santiago Filho, é, em boa hora, redescoberta pelo ensaísta Gil Francisco e nos chega em volume publicado sob o título “Flor em Rochedo Rubro”.

Gil Francisco, um professor que resiste e insiste em resgatar nossos poetas mortos e vivos, num trabalho hercúleo de pesquisa, inglório por assim dizer, porque não rende um tustão, nos dá a dimensão de obras e raridades que atestam que o seu trabalho primoroso não é vão.

“Reconstituir a memória nacional é tarefa difícil.Um verdadeiro quebra-cabeça, restando montá-lo, apesar da falta de inúmeras peças. Mas, num país que insiste em não cuidar de sua memória, nomes como o do poeta Enock Santiago Filho(1919-1945) estão criminosamente condenados ao esquecimento. Toda pesquisa, por mais ampla que seja, deixa sempre algumas omissões, falha quase natural que tentamos evitar.” – diz o pesquisador-escritor.

Em “Flor em Rochedo Rubro”, Gil Francisco resgata um poeta inteiro, pleno – se esquecido – um crime real, nos pouparia de tantos significados e significantes numa poética rara do século XIX.

Enock Santiago nasceu em 07 de outubro de 1919, em Aracaju, na rua Itabaiana, 380. No dia 03 de janeiro publica “Natal Eterno” e no dia 7, “Sonho”, ambos no Correio de Aracaju. Daí em diante, não parou a sua produção. Enock era, com certeza, um homem que comia o vento, uma de suas crônicas. Era um ser abissal, sofrido, como se soubesse deixar a terra prematuramente, como Mário Faustino. Morre aos 25 anos de idade, no mesmo ano em que se formaria em direito. Como poeta, exigente, Enock queria ver tudo que fosse publicado. Revisar, mexer no texto, expurgar, acrescentar se fosse o caso. Zitelmann de Oliva foi a responsável pela edição do livro de aproximadamente 100 poemas de sua autoria.

Não acredito em poesia sem dor, sem matéria cáustica, sem derramamento de sangue, sem audácia. O que nos faz descobrir um Enock Santiago dentro desses padrões é a sua lírica, sempre compreendida como alguém que se entrega à selva escura de Dante, sem esperar o que vai encontrar adiante: flor em rochedo rubro. Em “Solidão” Enock dispara:”Sim,/mas envolve-me uma distância infinita/sem ruído da vida/sem vozes inquietas/nem braços ansiosos/nem sonhos em visões./Só o vento revolteia acariciando a seriedade áspera das pedras/E fazendo com que gemem os grandes abertos serenos./Envolve-me uma distância infinita,/Como a ausência do mundo,/Como a renúncia de tudo/E a fuga do perfume, na tristeza da flor…/Envolve-me uma distância do céu/Cheio de brancas aves volteando nas silenciosas torres/Oh! Quietude!/Oh! Imensa solidão!/Neste profundo silêncio apenas sinto o êxtase da vida.”

Em primoroso ensaio, uma das mais belas páginas de crítica da literatura brasileira, José Umberto diz:  “O poeta de antanho depositava na palavra a medida do sacrário. O anonimato garantia o véu da sublimação artística. A modernidade rompe essa tradição pelo paradigma do estado singular de consciência(…) O cosmopolitismo poético de Enock, por uma fatalidade cardíaca, reduziu-se editorialmente ao círculo restrito da regionalidade, quando não extraviado por percalços de destino efêmero(…) O garimpo de Gil Francisco seleciona o desconhecido.” Mais que isso, Gil põe uma faca amolada em nossas mãos de criança travessa, que desconhecemos os nossos poetas, pintores, jornalistas e atravessamos séculos inteiro sob o pó de nossas palavras, enterradas pelo descaso do poder público e esmolado por um Cnpq de poucos/parcos resultados.

O encontro com a poética restauradora de Enock Santiago Filho, ora  reunido em “Flor em Rochedo Rubro”, depura nossa esperança subliminar, instaurando uma lembrança profunda de um poeta rico, filho de juiz, morto prematuramente, mas nem por isso, desatento ao mundo que se mostrou para ele, miserável.

Enock Santiago viveu como um monge, que sabe que a carne ingerida vai deixá-lo com insônia. Ninguém sabe dizer se estes talentos vêm de outras vidas ou são, reencarnações de outros vates, que depositam em almas antigas, lenços de lágrimas, construções de nenúfares como num lago de Monet. A verdade é que o poeta está vivo. Estar em matéria, é apenas uma mentira que acreditamos real. O fulgor dos seus versos, o grito da liberdade. “Amigo, dá-me a tua mão de dedos fortes/e olhamos daqui o Sol nascer.” Libertado e oprimido, saciado e faminto, consciência atormentada e só: assim Enock eteriza em sua poética os universos, matizes de alguém que nasceu para triunfar rápido, mesmo que na morte: esta aparição do espírito que nos cega.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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