Uma carta para Sofia

Aracaju, 03 de dezembro de 2013

Amada Sofia,

espero ansiosamente o dia de sua chegada, risco no calendário os dias a menos para te ver, embora não saibamos ao certo a data que você escolheu para chegar. Meu coração já se prepara para recebê-la, como me preparei para receber o teu irmão: e no momento em que o vi pela primeira vez, ainda cansado de nascer, nasceu junto um amor imenso, inabalável e incontível. A bem da verdade, já te amo desde agora, Sofia, só de alisar a barriguinha da tua mamãe e senti-la ali, sendo um pedacinho de gente.

Minha amada, queria muito poder te receber aqui fora com toda a pompa e circunstância que você merece e entregar em tuas pequeninas mãozinhas um mundo muito lindo, pleno de amor e sem sofrimento. Mas falhei muito, falhamos todos nessa empreitada! Quando chegares, te apresentarei um mundinho remendado, requentado, sofrido e alquebrado. Te contarei feliz de esperanças que ainda carrego, de lutas que ainda lutamos, mas sem poder conter ao final uma dorzinha por termos errado tanto, por termos desistido, por termos falhado.

Quando estiver grandinha e já puder ouvir umas certas historinhas um pouco assustadoras, lhe falarei sobre rios que existiam e se morreram diante de um monstro chamado Progresso. Histórias de terror para crianças. Guardo fotos para lhe mostrar um dia como prova de que existiram o Rio Sergipe, o São Francisco, o Xingu. Contarei a você histórias de florestas imensas pelas quais eu caminhei, mostrarei as fotos das plantas, dos pés cheios de barro, das pedras e dos riachos, das gentes que viviam nesses lugares. Contarei a história triste dessas gentes e dessas árvores, desaparecidas para dar lugar a essas imensas plantações de soja, de pasto, de milho transgênico.

Quando sua mãe me permitir, te levarei a conhecer as praias em que nós brincávamos quando éramos crianças, te contarei que ali havia apenas umas quantas famílias de pescadores e um mar limpíssimo. Mostrarei a você que, embaixo daquelas ruas asfaltadas, daquele monte de lojas envidraçadas, daquelas plantas exóticas, existiu um dia uma praia de areias brancas, silenciosa e calma, em que não havia o maldito Progresso. Você, por certo, me tomará por mentirosa, e, então, chamarei sua mãe “diz pra ela, amiga, conta como era isso antes de tudo!”.

Para fortalecer seu coração, amada, te contarei histórias de lindas mulheres e homens que lutaram até o fim, que acreditaram, que apontaram um caminho e nos serviram de farol nesta noite escura. Mas que, um dia, sentiram no peito a dor: “não queria estar ao lado dos que me venceram”. Vou lhe contar sobre umas pessoas famosas, com nomes gravados em livros, mas quero principalmente te contar daqueles cuja memória se perderá nas areias do tempo. Te contarei a história de uma mulher linda chamada Izaltina, que lutou ao lado de seu povo, que foi por séculos mal-tratado e excluído; de uma fada chamada Terezinha, que acreditou até o fim na possibilidade de uma educação amorosa e transformadora para todas as crianças; de um encantado de nome Molai que um dia resolveu plantar sozinho uma floresta.

Falarei a você de todas essas histórias para que você não perca nunca a esperança, para que encontre sempre um farol brilhando mesmo que seja muito distante. Porque não quero te contar as histórias dos homens e mulheres que maltrataram o povo por quem Izaltina tem lutado, ou os que ignoraram e destruíram a criança interna de tantos adultos que hoje amam e admiram a Terezinha, ou sobre quem derrubou as florestas que o Molai resolveu replantar. Não quero lhe falar sobre quem teve a maldita ideia de derrubar árvores para plantar cidades, de matar índios e negros em nome do Progresso, quem abre ruas para carros circularem e proíbem as gentes de caminharem. Não que eu queira lhe esconder essas histórias, mas é que estas, com certeza, você encontrará aos montes, sem nenhum esforço.

E planto sementes, minha fada, planto sementes para você. Planto árvores e sentimentos de todos os tipos e plantas para todos os gostos, para lhe entregar um mundinho menos feio, mais colorido, mais vivo. Enchi as mãos de sementes e ando a semeá-las pelo mundo, para que você encontre aqui um lugar melhor para se viver, talvez um pouco melhor do que este mundo que, envergonhada, apresentei ao seu irmão há anos atrás.

Minha flor de maracujá, o mundo aqui fora pode não ser dos melhores, dos mais bonitos, mas ainda vale a pena. Eu te prometo que sim. Minha pequena guerreira, sei que você tem lutado bastante por sua vida, não desista agora, estaremos aqui fora te esperando para lutar ao seu lado, para te ajudar, enxugar suas lágrimas e sorrir com você. Venha, que teu lugar entre os txais mais amados já está garantido.

Da tua tia que já te ama tantíssimo,
G.

* * *

A vida se faz de partidas e chegadas. Imensa estação de trem. Aracaju há dois dias amanhece calada. Nas esquinas, matriarcas entristecidas rezam benditos de adeuses. Embora todos os carros e gentes estejam na rua, há um silencioso respeito permeando a vida que insisti em seguir.

Marcelo Déda: presente!

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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