Katty Cristina Lima Sá
Mestre em História Comparada pela UFRJ
Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente
Alguns sobrenomes possuem uma grafia difícil de ser executada corretamente, sendo esse o caso de “Hobsbaum”, geralmente escrito com “u”, ainda que possua outras variações. Entre essas, está a de Eric John Ernest Hobsbawm, historiador inglês nascido na cidade de Alexandria em 1917, filho de pai britânico e mãe austríaca, ambos judeus e com sobrenome grafado da primeira forma apresentada. Contudo, a versão de Eric Hobsbawm – que durante seu registro de nascimento teve, erroneamente, o “w” colocado ao invés do “u” – é a mais famosa e dificilmente será esquecida graças a grande quantidade de obras que ela assina.
Hobsbawm foi uma figura cosmopolita desde suas origens; ele conheceu o mundo e foi conhecido por esse: era um garoto inglês nascido no Egito, teve sua infância em Viena e adolescência na efervescente Berlim dos anos de 1920. Em 1933, pouco após a ascensão de Adolf Hitler, o rapaz se mudou com seus tios para Londres; nesse caso, não se tratou de uma fuga das primeiras perseguições nazistas aos judeus, mas de uma causalidade que findou os negócios de seu tio Sidney na Alemanha. Três anos mais tarde, o jovem ingressou na Universidade de Cambridge e, pouco após a conclusão de seu curso, tornou-se um historiador abertamente marxista no Exército Britânico durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
A adesão ao comunismo, bem como a filiação ao Partido Comunista Britânico, seguiram Eric Hobsbawm durante boa parte de sua vida. No entanto, ele possuía claras divergências com a linha stalinista adotada pelo partido; por conta disso, Hobsbawm esteve ligado à criação de uma Nova Esquerda Britânica, bem como participou da Escola Inglesa do Marxismo, ao lado de intelectuais como Edward P. Thompson e Christopher Hill. Para a então nova versão do marxismo, a história econômica tinha que associar-se ao aspecto cultural, social e político.
Outro ponto de discordância entre Eric Hobsbawm e o partido era o jazz. Para este, tratava-se de uma degeneração burguesa, mas para o primeiro era uma paixão nascida no sótão de seu primo Denis em 1934. Durante a década de 1950, o envolvimento de Hobsbawm com o cenário jazzístico se aprofundou, de modo que ele se tornou um crítico. Em pouco tempo, seus textos ultrapassaram os perfis de musicistas e se atentaram aos aspectos sociais, como as condições de trabalho e a morte prematura de cantores. No ano de 1959, sob o pseudônimo de Francis Newton, Hobsbawm publicou a primeira edição de The Jazz Scene, traduzida no Brasil como História Social do Jazz (1989).
Em 1964, foi lançada a Era das Revoluções, responsável por proporcionar reconhecimento a Hobsbawm e por iniciar a quadrilogia composta ainda por Era do Capital (1975), A Era dos Impérios (1987) e a Era dos Extremos (1994). Como os outros trabalhos do historiador britânico, esses livros se destacaram por seu estilo claro, boas generalizações e abordagem transacional, sendo sucesso de vendas no mundo inteiro, especialmente no Brasil. Aqui, nós destacamos a última obra dessa quadrilogia, cujo período estudado, o “breve século XX”, foi testemunhado pelo autor.
Escrever sobre o tempo de sua própria vida, o tempo presente, não foi algo simples a Hobsbawm, que temia não possuir o distanciamento necessário para tanto. Ainda assim, ele percebeu que era necessário explicar o que havia ocorrido e o que estava acontecendo para aqueles que viveram em um século repleto de guerras e revoluções. Para realizar tal empreitada, seria necessário usar termos históricos e ter uma perspectiva global. E assim foi com A Era dos Extremos – o breve século XX, que se destacou ainda por sua visão pessimista em relação ao passado e ao então nascente século XXI. Esse ar desconfiado em relação a seu tempo não era novo em Eric Hobsbawm que, ainda adolescente, escreveu em seu diário: “Eu estou no século XX e sei que nada é certo”.
O ceticismo do historiador amante de jazz em relação ao seu próprio tempo e aos rumos que as sociedades globalizadas tomavam provém das análises que ele fez de seu meio, de sua erudição cultivada durante toda vida e de seu testemunho de grandes acontecimentos dentro e fora da Europa. Elas nos fazem refletir acerca do nosso século XXI, das escolhas políticas, sociais, econômicas e ambientais que fazemos, além dos impactos que elas trarão para as próximas gerações. No passado, a história fechada e alimentadora dos nacionalismos provocou guerras e não foi capaz de cessar o avanço da intolerância; atualmente, que culpa temos frente ao fortalecimento de práticas racistas, machistas, xenófobas e homofóbicas?
Com uma vida longa, próxima a um século de existência, Eric Hobsbawm faleceu aos 95 anos, em 01 de outubro de 2012. Sua obra foi tão vasta que não conseguimos citá-la totalmente neste texto tão breve, e o mesmo podemos dizer de seu olhar atento ao passado, presente e futuro. Entretanto, ressaltamos que seus livros continuam a ser impressos, vendidos e lidos no mundo inteiro, e não apenas por acadêmicos da história. Elas ultrapassam os muros da academia e nos fazem pensar tanto sobre os períodos e/ou problemas que se propõem a analisar como também sobre os anos que estão se seguindo sem a competência de Eric J. Hobsbawm.
Para saber mais:
EVANS, Richard J. Eric Hobsbawm: uma vida na história. Tradução de Cláudio Costa. São Paulo, Planeta, 2021.
HOBSBAWM, Eric. A Era dos Extremos – o breve século XX: 1914-1991. Tradução de Marco Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
HOBSBAWM, Eric. Tempos interessantes: uma vida no século XX. Tradução de S. Duarte. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.