Uma interinidade de fôlego

O mandato de Antônio Fernando de Souza como Procurador-Geral da República expirou em 28 de junho. Como naquela data o processo de escolha e aprovação do novo Procurador-Geral, Roberto Gurgel (indicado pelo Presidente da República a partir de uma lista tríplice formada pela Associação Nacional dos Procuradores da República), ainda não havia sido concluído, a Procurador Débora Macedo Duprat de Britto Pereira assumiu temporariamente o exercício da função, na data de 29 de junho de 2009, permanecendo nesse exercício até a data de 22 de julho (data em que Roberto Gurgel, indicado pelo Presidente da República e aprovado pelo Senado Federal, tomou posse). Passou 23 (vinte e três) dias em tal exercício. Pode-se dizer que, durante esse curto período, deixou a sua marca.

 

Com efeito, destacando apenas a propositura de ações judiciais no Supremo Tribunal Federal (uma das inúmeras atribuições do cargo), a então Procuradora-Geral da República em exercício Débora Duprat interpôs as seguintes medidas judiciais:

 

1 – Argüição de Descumprimento Preceito Fundamental n° 178, na qual pede que o STF declare obrigatório o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição de união estável entre homem e mulher;

 

2 – Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 181, na qual pede que o STF declare que a norma do §3º do Art. 51 da Lei nº não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 e, portanto, a sua invalidade jurídica. Essa norma estabelece restrições ao acesso à justiça pelos militares;

 

3 – Argüição de Descumprimento Preceito Fundamental n° 182, na qual pede que o STF reconheça: a) que o Art. 20, § 2º da Lei nº 8.742/93 (“Para efeito de concessão deste benefício, a pessoa portadora de deficiência é aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho”) não foi recepcionado pela Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência (ratificada no Brasil pelo Decreto Legislativo n° 186/2008, pelo procedimento equivalente ao de aprovação, pelo Congresso, de emenda à constituição); b) que o conceito de pessoas com deficiência estabelecido na mencionada Convenção (aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas) é de uso imperativo no direito brasileiro, sendo imediatamente aplicável no que concerne aos critérios para concessão de benefícios de prestação continuada disciplinados pela Lei n° 8.742/93;

 

4 – Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 183, na qual pede que o STF declare que a Constituição Federal de 1988 não recepcionou dispositivos da Lei n° 3.857/60, que regulamenta a profissão de músico;

 

5 – Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n° 187, na qual pede que o STF declare a invalidade de decisões judiciais proibitivas da realização de eventos públicos em favor da legalização das drogas, porque tais decisões violam a liberdade de expressão e de reunião;

 

6 – Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4263, na qual pede que o STF declare a inconstitucionalidade da Resolução n° 36/2009, do Conselho Nacional do Ministério Público, que dispõe sobre o pedido e a utilização das interceptações telefônicas no âmbito do Ministério Público;

 

7 – Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4267, na qual pede que o STF declare a inconstitucionalidade da Lei n° 10.784/2001, do Estado de São Paulo, que trata sobre ingresso e permanência de cães-guia em locais públicos e privados;

 

8 – Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4269, na qual pede que o STF declare a inconstitucionalidade de diversos dispositivos da Lei n° 11.952/2009, que dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações em terras situadas em áreas da União na Amazônia;

 

9 – Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4275, na qual pede que o STF confira interpretação conforme à Constituição ao disposto no Art. 58 da Lei nº 6.015/73, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 9.708/98 (“O premome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios”), para que se reconheça o direito de os transexuais substituírem o prenome e sexo no registro civil, independentemente da realização de cirurgia de transgenitalização.

 

É, sem sombra de dúvida, uma atuação interina de muito fôlego. O manejo de tantas ações de envergadura constitucional, em temas tão importantes e polêmicos, num curto espaço de tempo, demonstra iniciativa, dinamismo, pró-atividade e sensibilidade social.

 

Contudo, há inconvenientes. Esse conjunto amplo de iniciativas tende a aprofundar o monopólio da jurisdição constitucional pelo STF, com inibição do evoluir natural da jurisprudência de base.

 

Noutras palavras, essas iniciativas da Procuradora da República Débora Duprat, durante a sua interinidade na função de Procuradora-Geral, servem ao aprofundamento do ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal. O roteiro, apesar de recente, já é conhecido: serão efetuadas audiências públicas no STF, sobre a maioria desses assuntos, antes de o STF realizar as sessões definitivas de julgamento. O STF a monopolizar o debate público sobre tais questões.

 

O risco desse ativismo judicial é grande, e a própria Suprema Corte precisa encontrar um ponto de equilíbrio, o que não parece ser a sua intenção, principalmente nesse momento em que se encontra sob a condução do Ministro Gilmar Mendes, notório adepto desse modelo de concentração do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos no próprio STF.

 

E que risco é esse? É o de tornar a Suprema Corte a depositária de todas as esperanças e anseios da sociedade. Já que os demais poderes, em especial o Legislativo, vêm falhando seriamente no atendimento das demandas coletivas, que o Poder Judiciário e em especial o STF assuma esse papel, em nome do implemento de boa vontade das determinações constitucionais.

 

Desse modo, os grandes temas nacionais, que deveriam necessariamente passar por amplo debate democrático em toda a sociedade e nos locais mais adequados para o exercício da representação política dessa mesma sociedade (Poder Legislativo e Poder Executivo), passam a ser objeto de monopolização pelo Poder Judiciário (leia-se STF).

 

E esse é um caminho muito perigoso para a nossa democracia, que ainda busca consolidação após vinte anos do apogeu da redemocratização.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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