Edmilson Menezes
Doutor em Filosofia e professor da Universidade Federal de Sergipe
Artigo recentemente publicado pela Folha de São Paulo (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/futuro-do-ensino-em-universidade-deve-ser-hibrido-e-interdisciplinar.shtml) e assinado por Manoella Smith comenta o “diagnóstico traçado por 12 especialistas que debateram o futuro do ensino superior” no Brasil. Pela importância, densidade e caráter técnico do tema, os debatedores deveriam ter oferecido um pouco mais de precisão conceitual aos seus leitores, porquanto esse procedimento tem a capacidade de diluir ambiguidades e indeterminações que se consorciam a elementos camuflados nas entrelinhas de textos dessa natureza. Hoje, mais do que em qualquer outro momento da história recente, precisamos ser capazes de responder a certos grupos de questões basilares a fim de nos julgarmos habilitados a defender determinadas ideias, caso não queiramos adentrar no campo movediço da imprecisão (uma das mães do oportunismo!). Senão, vejamos determinadas anfibologias que se me afiguraram no artigo referido acima – ao menos quanto à universidade pública brasileira.
Já no início, o texto da reportagem é enfático e retumbante: “Se quiser continuar relevante, a universidade do futuro terá que adotar uma mescla de ensino presencial e remoto, seguir um currículo interdisciplinar e fomentar a diversidade tanto no corpo discente como docente.” Primo, é imperioso se perguntar: o que é uma “universidade relevante”? Essa relevância é dirigida a quem? É avaliada por quem? Outro ponto: o que temos em mente com a palavra interdisciplinar (esse mantra repetido à exaustão!)? Se a tomarmos como um nível complexo de interdependência de conteúdos entre disciplinas, a universidade já o faz há anos. Sigamos. O que é a diversidade e como mensurá-la? Quando estamos diante dela? Permanecemos frente a questionamentos de estratégica relevância, quando não mais porque as universidades públicas brasileiras já incorporaram a mescla entre ensino presencial e remoto, quer seja nas opções de cursos oferecidos, quer seja nas muitas atividades acadêmico-pedagógicas que se efetivam remotamente nas disciplinas presenciais; elas apoiam e admitem em suas práticas as políticas de cotas e a reserva de vagas para grupos diversos como, por exemplo, os portadores de necessidades especiais.
E tem ainda: “A impossibilidade de manter as salas de aula cheias obrigou milhares de professores a recorrerem à tecnologia para continuarem lecionando. O que se tem visto é mais improviso do que técnicas de EAD (educação a distância), mas a discussão sobre o uso de tecnologia na educação veio para ficar.” Quais são as técnicas de EAD às quais o debatedor se refere? Como exigir de professores do ensino presencial que em três meses eles dominem um aparato com o qual não têm familiaridade? Segue: “Uma dificuldade das instituições é que parte do copo docente não domina a tecnologia e, às vezes, os alunos não têm autonomia necessária ou tempo para se dedicar às metodologias ativas de ensinos.” De onde o opinante tira essa informação: “parte do corpo docente não domina a tecnologia”? A qual corpo docente se refere? Como falarmos de autonomia perante alunos que adentram, de forma incipiente, a um complexo e intricado universo de conteúdos que ele levará entre 4 e 6 anos para assimilar e dominar? Nesse contexto, o que são metodologias ativas de ensino? Na sequência: “é preciso trazer os alunos para a construção do conhecimento. (…) cabe a ele montar a própria grade curricular.” Os consultados não abonam uma única palavra sobre o que entendem por conhecimento – categoria fundamental de orientação teórica e prática da vida universitária. Sabemos, há muito tempo, que “construímos” conhecimento como síntese de um trabalho árduo de pesquisa, atividade difícil na qual não cabe o improviso e, portanto, exige iniciação. Com qual instrumental o não-iniciado vai montar o currículo que vai iniciá-lo? De acordo com um especialista português ouvido, “Precisamos formar especialistas em transdisciplinaridade”. A pergunta a ser dirigida aqui ao articulista parece óbvia: o que é transdisciplinaridade? O especialista (esse é o termo usado na reportagem) formado em universidade eminentemente disciplinar e bem-sucedida, por isso mesmo pode ser chamado de especialista, propõe para as universidades não-europeias esse hibrido conceitual sem determinação específica chamado transdisciplinaridade. Típico caso de contradição entre os termos: um especialista em transdisciplinaridade!
É curioso assistir a recorrência de se convidar pra esse tipo de debate professores envolvidos com educação a distância e quejandos – um mercado empresarial que só cresce, “formando” em massa e com performances altamente questionáveis em seus resultados. Não convidam um especialista, por exemplo, em microbiologia para dizer que a disciplina e a especialização técnica são fundamentais em sua área. A pandemia mostrou ao mundo como os especialistas são imprescindíveis. Pretende-se com esse tipo de análise (como o da reportagem em discussão) passar a metodologia à frente do conteúdo, tornando-a quase independente. O fato é que boa parte das instituições de ensino superior mantenedoras de cursos a distância (inseridas naquele mercado empresarial) não preparam bem, em termos de conteúdo, os profissionais dali oriundos. Então, a solução é distorcer o foco e dizer que a universidade precisa se abrir às novas tecnologias e suas novas metodologias ( e nada se fala da deficiência de conteúdo!). Todo esse aparato novidadeiro encobre um dos pontos candentes da discussão: o problema da desigualdade social! A tecnologia não anula tal desigualdade. O episódio não é só que os professores universitários não dominam certas tecnologias; muitos dos alunos não têm acesso a uma série de instrumentos de ordem tecnológica média ou elevada, pois não têm dinheiro. Esse ar novo, moderno, que se quer imprimir aos usos das tecnologias na educação superior esconde uma posição ambígua e interessada frente à técnica. Na verdade, tudo continua como está: para os ricos e os da classe média, alta tecnologia associada a doses maciças de conteúdo presencial, metodologias diretivas e pesquisa, disciplinas e acesso à densidade que elas comportam; para os mais pobres, a EAD, o conteúdo ralo, a transdisciplinaridade e as metodologias ativas. Para os segundos, os cargos subalternos; para os primeiros, os postos de direção e os altos salários. Pronto! Tudo solucionado!
Valho-me, para encerrar, da aguda e lúcida reflexão de Ezio Mauro, na obra Babel (p.79): na era do Google e da Wikpédia, nós olhamos para a tecnologia não apenas a procura de uma solução, mas – e com frequência sem percebê-lo – de uma seleção. O que estamos excluindo de nosso processo cognitivo é precisamente a seleção, vale dizer, a capacidade de estudar, entender, descartar, definir, refinar e finalmente escolher. Com efeito, esse ato de livrar-se dos fardos é exatamente o que torna a tecnologia tão sedutora e admirável. Nós deixamos até de enxergar o processo, nós não enxergamos o conceito, cegados que estamos pela celeridade da solução.