Os mexicanos chamam de “Corrida de Touros” o espetáculo medieval, realizado num estádio repleto de torcedores, como as antigas arenas onde homens e feras se enfrentavam até a morte. No estádio alguns personagens conduzem as cenas: o JUIZ, que fica instalado numa cabine, bem no alto da tribuna, comandando, com sinais de mãos, o espetáculoo; os TOUREIROS, que têm como função, dentro do ciclo da “Corrida”, desgastar as forças do TOURO, como fazem, igualmente, os PICADORES, com seus cavalos e lanças pontiagudas, ferindo o Touro, entregando-o, cansado e sangrando, ao MATADOR, que é o Toureiro principal, em cada uma das “corridas”, encarregado de dar o melhor de si para a platéia ruidosa e ansiosa.
No México, como na Espanha, o Touro é morto. O MATADOR dispõe de todos os meios para executar o TOURO, com um espadim, para afirmar-se na arte de TOUREIRO. Todos os personagens, principais e coadjuvantes, são partícipes de uma função central, que é o gesto fatal do MATADOR diante do TOURO. É a mais sofisticada cena, quando o TOURO parece simbolizar, na emblemática da festa, o inconsciente, a força bruta, a ´paixão sexsual, e o MATADOR representa, na mesma ordem, a consciência, o conhecimento, a inteligência.
É numerosa a saga das Vacas, dos Bois, dos Touros na história dos povos primitivos. O TOURO, por exemplo, é tido como grande fertilizador, portador da força vital, transmissor da água da vida. Segundo a tradição persa o mundo formou-se do TOURO primitivo, morto. Entre os Vedas o TOURO é andrógino, com imagem de autofertilização e de geração primordial. Já o TOUREIRO encarna a sutileza feminina, que atrai o macho, convida à penetração e finalmente lhe domina. TOURO e TOUREIRO, portanto, rivais na mesma cena sangrenta. Enquanto o TOURO é o bruto, a energia primitiva e selvagem, com toda a sua potência obscura, o macho, com seu poder sexual, o homem, na figura do MATADOR, deve disciplinar e conduzir a força com inteligência, enobrecendo e sublimando o sexo com o amor. Isto significa, então, matar em si mesmo a animalidade primária, vencer a brutalidade que há nele, como interpretou Giovani Papini.
Os TOUREIROS, todos eles, são paramentados com rigor. Usam um pequeno chapéu, com dois bicos arredondados, uma roupa justa, com um jaleco enfeitado; usam uma espécie de cóqui, no cabelo, e usam meias escarlates subindo pelas pernas, e sapatos cômodos, como sapatilhas. Na cenas de aproximação, quando não se valem mais dos BAUDERILLERO, hastes de madeira, enfeitadas, com uma pequena lâmina, em forma de anzol, na extremidade, e que são espetadas no lombo do TOURO, nem usa a capa rosa, com a qual faz o Olé, o MATADOR ensaia passos cadenciados, marcados pelos trejeitos femininos, como se ali, na vista de todos, a coragem do TOUREIRO se transformasse num bailado sutil, onde o caminhar efeminado, os passos plamengos, os gestos, tentam seduzir o TOURO para a cilada da morte.
É assim, mais mulher que homem, que o TOUREIRO MATADOR faz a festa orgásmica da multidão. O TOURO, humilhado, derrotado e morto, representa o objeto da festa, que conta com a entrada triunfal e a volta vitoriosa do MATADOR pelo estádio, recebendo, abençoando com o toque das mãos e devolvendo as oferendas, como se cada objeto lançado na arena passasse a ser uma relíquia, tocada simbolicamente pelo vencedor. Dois destinos: o TOURO, retirado no arrasto do carro, o MATADOR, o herói do jogo fingido é a festa, na ovação que aclama a decisão do juiz.
A impressão que fica, além dos componentes simbólicos do masculino/feminino, da força/inteligência, é que o TOURO, como o Boi comum, ocupa um lugar destacado nas culturas humanas. Mas, em contraste com o TOURO, o Boi é símbolo de paciência, sofrimento, passividade, resignação. Nos Reisados nordestinos, o Boi entra, dança, arremete e termina dominado e abatido. O sacrifício, o sofrimento, a paciência e o trabalho forçado fazem as imagens do Boi. E Na canga, como nos folguedos, o Boi tem a síntese do seu próprio símbolo. Em passividade o povo assemelha-se ao Boi. Caméron atribui ao povo um caráter lunar, o que quer dizer que o povo não tem luz própria, é passivo, receptivo, frente à função intermediadora do herói, como o TOUREIRO, e, por extensão, do chefe, do guia.
Na “corrida de touros” o processo representativo do espetáculo remete ao simbolismo aproximador com a história dos povos, também submetidos a todos os processos de desgaste, de perda de força moral, até a exaustão. Além de viver do sofrimento, nutrido apenas pela esperança, o povo também morre, estocado pela fina lâmina da indiferença, da desigualdade, que penetra fundo o corpo e atravessa o coração. A submissão recorrente, no México como na Espanha, ou como no Brasil, faz do Boi e do TOURO, como faz do povo, personagens fabulosos de uma saga que impõe melhor leitura, no contexto da história.