VERSO & PROSA VIRTUOSOS (I)

Nem sempre é fácil distinguir a produção corrente das Crônicas da Idade Média e das demais formas de expressão literária, que dominou os primeiros séculos do Renascimento. Um traço comum, no entanto, faz da cultura produzida um exercício virtuoso, cortesão, que destaca autores e atores nos contextos de público. Há uma passagem, de um tempo a outro, que agrega comportamentos comuns a diversos paises da Europa: Itália, França, Inglaterra, Alemanha, Espanha, Portugal, principalmente. Waldemar Vedel, no seu Romántica Caballeresca (Barcelona, Editorial Labor, 1927 – tradução de Manuel Sánchez Sarto) anota o processo utilizado pelos nobres alemães, da Ratisbona (Regensberg), que tinham ao seu lado clérigos para verterem as crônicas latinas em crônicas rimadas alemãs, ricas em temas de conversação, enquanto os jograis de Franconia e de Baviera se dedicavam a modernizar e romantizar as antigas canções heróicas, adornando-as com motivos orientais e das cruzadas. As composições populares foram submetidas, tanto na França quanto na Alemanha, a uma reelaboração cortesã. Senhores e damas nobres se transformaram em autores de músicas para danças, cantos de amor sobre cavalheiros e damas, com saudações que circulavam entre essas pessoas, atraindo a figura do cantor, que começa a aparecer nas Cortes, recitando suas canções. As virtudes são tematizadas nas produções da época, tanto as cardeais, consideradas como princípio das demais virtudes- a Justiça e a Prudência, ou Moderação, como as teologais, que têm Deus como objeto central – a Fé, a Esperança e a Caridade. O século XVI foi pródigo de obras virtuosas, tanto as novelas de cavalaria, com seus heroísmos, a partir do Amadis de Gaula e suas continuações, como as novelas pastoris, das quais a Diana, de Montemayor, parece ser pioneira no gênero. Avolumaram os títulos, as edições, as traduções, fazendo de cada cidade um centro de produção e difusão desse tipo especial de literatura. Toledo, Alcalá, Barcelona e sobretudo Valencia, todas na Espanha, instalaram prelos que editaram dezenas e dezenas de títulos e reimprimiram milhares de exemplares. A Diana é uma composição em verso e prosa, em sete livros e seu autor é o português Jorge de Montemayor (1520-1561). É uma novela pastoril que narra diversas estórias, muitos dos quais retirados da realidade. Alguns críticos consideram que seus personagens escondem figuras da época, como o próprio autor, que encobriria os seus amores com damas da corte. Outros identificam no Sireno, um dos disputantes do amor de Diana, o Duque de Alba. Jorge de Montemayor era músico, soldado e poeta e teve as suas obras proibidas em Portugal, “por haver dado a reinos estranhos o que devia aquele em que nasceu”. Diana, cuja primeira edição e de 1545, foi editada em Valencia em 1558, e teve 17 outras edições, antes de 1700. No Brasil do século XVI o livro de Montemayor era lido, apesar de proibido, como se tem notícia nas confissões de Bartolomeu Fragoso, Paula de Siqueira, Domingos Gomes Pimenta e Nuno Fernandes, perante a Visitação da Bahia, em 1591. Bartolomeu Fragoso, cristão velho, natural de Lisboa, solteiro, licenciado em artes, morava na Bahia quando discutiu com seu mestre, sobre a circunferência e o diâmetro da terra, confessando ter lido a Diana, rasgando página a página, após a leitura. Foi processado e condenado a sair em público, descalço, desbarretado, cingido com uma corda, vela acesa na mão e fazer abjuração de leve suspeita de fé após ouvir sua sentença da igreja. Foi degredado para todo o sempre da Bahia. Paula Siqueira, que confessor ter tido relações sexuais com outra mulher, era portuguesa de Lisboa, tinha 40 anos, casada, e foi processada sobretudo por ler a Diana. Domingos Gomes pimenta, baiano, 24 anos, também confessou ter lido a Diana de Jorge de Montemayor, do mesmo modo que Nuno Fernandes, cristão novo também da Bahia, que além da Diana disse ter lido as Metamorfoses, de Ovídio, e Eufrozina, de Jorge Pereira de Vasconcelos, editado em 1555 e também proibido pela Inquisição. A leitura da Diana significava, no Brasil, a excomunhão. Houve, ainda, uma confissão de uma pessoa que usando um instrumento cortante furou páginas de texto e de gravuras do Flos Sanctorum, composição hagiográfica, impressa em Lisboa em 1513 e que indicava ser uma tradução anônima, em língua portuguesa, da Legenda Áurea, livro do século XIII, do dominicano Jacobus de Voragine. Além de Diana, Sireno, Silvano, Selvagia, um personagem se destacava no livro. Era Felicia, uma sábia que tomou dois vasos de água, deu a beber de um ao pastor Sireno, e do outro a Silvano e Selvagia. E depois de certo tempo dormindo profundamente, Felicia os tocou na cabeça com um certo livro (não é dito qual) e despertaram: Sireno livre dos amores de Diana, Silvano e Selvagia mutuamente enamorados. É o que Cervantes chama, no Quixote, de “água encantada”. Shakespeare (1564-1616), em Sonho de uma noite de verão, recorre a um tipo semelhante de simpatia, pela voz de Oberon, mandando que Bule coloque um gota do sumo da flor amor-perfeito nos olhos de Titânia, e dos jovens apaixonados por mulheres diferentes, obtendo o mesmo resultado alcançado por Felicia na Diana. No capítulo VI do Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, o cavaleiro andante tem sua estante de livros vistoriada pelo padre e pelo barbeiro. A certa altura o padre disse: “Estes não devem de ser de cavalaria, sim de poesia e abrindo um viu que a era a Diana de Jorge de Montemayor e disse (crendo que os demais eram do mesmo gênero)estes não merecem ser queimados como os demais, porque não fazem nem fizeram o dano que os cavalaria têm feito, que são livros de entretenimento sem prejuízo de terceiros.”(continua) Permitida a reprodução desde que citada a fonte “Pesquise – Pesquisa de Sergipe / InfoNet”

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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