Violência (extra) contra a mulher

Andreza Maynard
Doutora em História pela UNESP e Pós-doutora em História pela UFRPE
Bolsista FAPITEC/CNPq em modalidade DCR
Membro do GET/UFS/CNPq

Trabalho apoiado pelo projeto "Quando a Guerra chegou ao Brasil: Ataques submarinos e memórias nos mares de Sergipe e Bahia (1942-1945)", Edital Universal CNPq 2014.

O tema da redação do último Enem (“A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”) repercutiu nas redes sociais e acendeu os debates sobre o assunto fora do ambiente virtual. A violência contra a mulher não se restringe ao caso brasileiro, tão pouco é um fato recente. O fenômeno da agressão contra a mulher está inscrito na História. Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o estupro foi praticado de forma generalizada e sistemática.

Os estupros individuais e coletivos foram (e ainda são) empregados como arma de guerra. Esse é um tema pouco abordado quando se fala em Segunda Guerra Mundial. É comum que cultivemos uma ilusão maniqueísta do conflito. Dessa forma, os integrantes do Eixo aparecem como a encarnação do mal, enquanto que os soldados pertencentes às tropas aliadas estariam preocupados em promover o bem de uma forma geral. No entanto, há evidências de que estupros foram cometidos por soldados de várias nacionalidades.

Antes de a Alemanha nazista iniciar sua expansão territorial sobre os vizinhos europeus, o império nipônico avançava no front oriental. Essa movimentação foi acompanhada de diversas atrocidades, inclusive estupros. Os massacres de Nanquim, em 13 de dezembro de 1937 foram responsáveis por uma das mais atrozes experiências da Segunda Guerra.

De acordo com Claude Quétel, os soldados nipônicos “Fuzilam, decapitam, rasgam os ventres com as baionetas, queimam habitantes vivos, afogam no Yanzi e também estupram. São ao menos 20 mil mulheres de todas as idades, mas também meninas, que são violentadas depois de terem sido procuradas até nos hospitais e nas escolas” (QUÉTEL, 2009, p. 57). Além disso, o comando militar japonês capturou e prostituiu a força de 100 a 200 mil coreanas, para satisfazerem os soldados que estavam na frente de batalha. Durante a Guerra milhares de chinesas, filipinas e indonésias também seriam prostituídas à força.

As tropas japonesas que entraram em Nanquim abismaram até mesmo os nazistas, que teriam mencionado o episódio como uma “bestialidade mecânica”. Os estupros cometidos pelas tropas nazistas não foram tão sistematizadas, tendo ocorrido de forma pontual, mas numerosa, nos Balcãs, França e Itália, sobretudo a partir do fim de 1944 quando muitos soldados estavam por conta própria. Para além de um estado de caos que se viva durante a Segunda Guerra, as mulheres ainda estavam à mercê dos desejos dos soldados.

Mesmo os norte-americanos, filhos de uma cultura puritana, seriam responsáveis por estupros praticados contra mulheres inglesas, francesas e alemãs. O número foi reduzido na Grã-Bretanha e os casos mais disfarçados, como por exemplo, um encontro amoroso em que a jovem se recusava em consentir o sexo, mas era obrigada a fazê-lo. As francesas tinham, para as tropas, a reputação de serem fáceis. Por sua vez as alemãs eram tidas como colaboracionistas. Uma maneira dos advogados defenderem os soldados norte-americanos era informar sobre a embriaguez do acusado, além de mencionar a facilidade das jovens. Muitos norte-americanos se aproveitaram da condição de “libertadores” para explorar sexualmente mulheres de territórios ocupados.

Já o Exército Vermelho praticou o estupro de forma ampla durante o avanço sobre a Alemanha. Há relatos de estupros coletivos, em frente de crianças. Mulheres eram violentadas e suplicavam que os soldados russos as matassem. Muitas alemãs eram violentadas em troca de um pouco de comida. Milhares engravidaram e tantas outras contraíram doenças venéreas.

Por mais brutal que tivessem sido esses atos, os estupros não foram configurados como um crime contra a humanidade durante os processos de Nuremberg. Numa triste constatação, vê-se que os estupros continuam a ocorrer nos conflitos atuais. A Convenção de Genebra já reconhece o estupro como arma de guerra. Mas como afirma Gilberto Safarti “O estupro não é simplesmente uma forma de violência de um grupo em relação a outro e, sim, mais uma forma de reafirmação da dominância masculina, que transforma a mulher em um objeto de pilhagem da guerra”(SARFATI, 2005, p.297).

Conforme afirmado no início do texto, a violência contra a mulher não se restringe ao Brasil. Mas é importante entender as características próprias ao caso brasileiro. Ao mesmo tempo, podem-se perceber características que permanecem nos casos de estupro em qualquer época como a tendência a justificar o ato mediante a atribuição de culpa à vítima. No caso da guerra a vitima pode ser classificada como uma inimiga que merece ser castigada. Em dezembro de 2012 o mundo se chocou com o caso de uma mulher de 23 anos que foi estuprada na Índia por 5 homens, vindo a falecer em decorrência das agressões físicas sofridas na ocasião. Um dos acusados culpou a vítima pelo estupro (http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/03/condenado-a-morte-por-estupro-coletivo-na-india-culpa-mulher-por-crime.html).

A permanência da desigualdade entre os gêneros, com a necessidade masculina de subjugar a mulher, bem como a tendência dos estupradores de culpar a vítima pelo crime são fatos. Isto chama a atenção para a necessidade de colocar a violência contra a mulher e a igualdade de gêneros como assuntos que devem compor os currículos escolares. Ao mesmo tempo em que é preciso haver uma justiça mais eficiente e atenta às necessidades atuais da sociedade. Lastimavelmente a violência contra a mulher (sob várias formas) não é um problema superado. O tema guarda uma brutal atualidade.

Autores mencionados:
QUÉTEL, Claude. As mulheres na guerra, 1939-1945. Trad. Ciro Mioranza. São Paulo: Larrouse do Brasil, 2009.
SARFATI, Gilberto. Teoria das relações internacionais. São Paulo: Saraiva, 2005.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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