“A morte do Velho Chico?”, por Carlos Hermínio de Aguiar Oliveira
No último dia 4 de dezembro, justamente dois meses após a comemoração dos 502 anos do descobrimento da foz do rio São Francisco, ocorrida na cidade de Penedo, recebemos a triste notícia do falecimento do Eng. Agr.° José Theodomiro de Araújo. Servidor da Codevasf, vindo da antiga Comissão do Vale do São Francisco, impressionava a todos que tiveram a oportunidade de conviver com o mesmo ou presenciar as suas inúmeras peregrinações e palestras pelo Vale do São Francisco, ficando em todos nós que vivenciamos a problemática da Bacia do São Francisco o respeito e uma admiração profunda pelo seu grau de conhecimento sobre o rio São Francisco e a incansável luta pela sua defesa. Recordar Theodomiro, logo após a sua partida, é algo importante para mantermos acesos seus ideais e ensinamentos, assim como reviver as suas frases, os seus momentos iluminados de piadas e de contador de “causos” ribeirinhos que, no auge das discussões calorosas, serviam para aliviar a tensão dos que participavam dos históricos encontros e reuniões realizados na Bacia do São Francisco. É o reconhecimento público pela significativa contribuição que ele sempre nos prestou, assim como a todos aqueles que o procuravam, e de nos inspirar nele para continuar a sua luta em prol do Vale do São Francisco. Nascido em 1937, no então distrito de Afrânio, Theodomiro muda-se para Petrolina em 1946, onde teve a oportunidade de ver o rio São Francisco pela primeira vez: “Imponente, majestoso o Velho Chico havia acabado de sair da cidade de Juazeiro onde havia causado alguns estragos; começava aí uma paixão que se tornou a lenda da minha vida e passei a me interessar por tudo que lhe dizia respeito”, recordação esta que consta de seu depoimento em 18 de março de 1998, por ocasião do recebimento do título de cidadão baiano outorgado pela Assembléia Legislativa da Bahia, o que viria a ocorrer também aqui no Estado de Sergipe. Desde aquela época, o Velho Chico passou a se tornar íntimo de Theodomiro, o que fez com que ele tomasse três decisões importantes na sua vida. A primeira delas foi dedicar-se ao estudo do São Francisco, para entendê-lo melhor, aproveitar os seus recursos em benefício de sua gente e, se possível, tornar-se uma voz em sua defesa para, como um missionário, conquistar prosélitos para essa grande causa. A segunda foi cursar agronomia, por entender que essa formação acadêmica lhe permitiria estar mais próximo do rio São Francisco no seu dia a dia. A terceira foi a decisão de abdicar de oportunidades de enriquecimento para se dedicar seu trabalho em benefício do povo ribeirinho. E nessa fase, a missão teve que ser compartilhada com a família, principalmente com a sua estimada esposa que o estimulou, nas horas difíceis, a continuar e “não olhar para trás, após segurar a rabiça do arado”, para renunciar ao crescimento material, se isso implicasse em sacrificar o seu primeiro ideal. Theodomiro abraça, assim, a causa do São Francisco, por entender que se outra importância não tivesse e ainda que fosse a única, a de conduzir 100 bilhões de m³ de água anualmente para o Oceano Atlântico atravessando o semi-árido nordestino, só neste aspecto, merecia uma atenção maior da sociedade e dos governos municipais, estaduais e federal. Para colocar em marcha seus propósitos idealizados, Theodomiro parte para imprimir uma série de pontos de vista e defendê-los de forma categórica, percorrendo todo o Vale do São Francisco, sempre munido de dados e usando de uma memória e oratória invejável. Começa por denunciar as agressões que vem sofrendo a Bacia do São Francisco, onde praticamente verifica-se a ausência de tratamento de esgotos em seus 504 municípios, a presença em trechos dos afluentes de teores acima do permitido de elementos como cádmio, zinco, manganês, mercúrio, chumbo, sem se falar nos coliformes fecais mais comuns em altos níveis. Apresenta o conflito energia x irrigação, criticando que “os recursos hídricos do São Francisco estão aí sendo utilizados sem um gerenciamento adequado, açambarcados pelo setor que primeiro chegar para comprometê-lo. Milhares de famílias sofrem a interferência do setor elétrico que, forçado a construir suas hidroelétricas por pressão das sociedades urbanas, as expulsa de suas terras inundadas pelas barragens, atirando-as na ociosidade, sendo mantidas com recursos do poder público, ou seja, do contribuinte”. Ele denunciava a inexistência, no Vale do São Francisco, de uma política disciplinadora da proteção qualitativa e quantitativa de suas águas, para que se pudesse fazer corretamente seu aproveitamento múltiplo. No aspecto quantitativo, nunca houve uma preocupação em aumentar os estoques para disponibilizar um aumento do seu aproveitamento. Dizia ele: “parece que todos estão satisfeitos com o fato de que apesar de dispor de 8 milhões de terras irrigáveis, a ausência de obras de acumulação, reservação, compensação e regularização permite apenas irrigar o patamar de 640 mil hectares, pelo comprometimento com a geração de energia, quando, com obras importantes, poder-se-ia chegar a 1.800.000 hectares irrigados, sem prejuízo para o setor elétrico”. Theodomiro entendia, então, que era necessário movimentar a sociedade sanfranciscana, conscientizá-la, arrancá-la do estado de letargia em que se encontrava, demonstrando total desconhecimento das potencialidades do grande Vale e deixando que os programas lhes fossem impingidos de cima para baixo, sem a sua participação. Nesse sentido, na década de 90, Theodomiro vai implementar uma série de ações, em diversos níveis, visando estimular a participação da sociedade: a estruturação do movimento SOS São Francisco, a instalação da CIPE – São Francisco – Comissão Interestadual Parlamentar do São Francisco; a interiorização do CEEIVASF – Comitê Executivo de Estudos Integrados da Bacia do São Francisco; a criação do Instituto Manoel Novaes para o Desenvolvimento do Vale do São Francisco – IMAN e a fundação da UNIVALE – União das Prefeituras do Vale do São Francisco, onde os prefeitos dispõem de um fórum especifico para defesa dos interesses da bacia e uniformização das ações políticas e executivas em direção ao desenvolvimento a partir da base municipal. Mais recentemente, Theodomiro foi o responsável maior pela coordenação do processo de mobilização da sociedade para a escolha dos atuais membros do Comitê da Bacia do São Francisco, através de convênio do IMAN com a Agência Nacional de Águas. A transposição das águas do São Francisco, sem dúvida alguma, foi o fato que mais dispensou ultimamente a atenção de Theodomiro. Para não me alongar mais, pois teríamos argumentos, assuntos e um longo acervo de dados e fatos importantes, fico com a última intervenção pública de Theodomiro, por ocasião da reunião da CIPE, em 21 de outubro passado, em Minas Gerais, quando ele se dirigiu ao Vice Presidente da República, Dr. José Alencar, ao assistir pela quarta vez à apresentação do Projeto de utilização das águas do Rio São Francisco pelo Nordeste Setentrional. Após uma retórica bem polida com diversas citações de filósofos e intelectuais da antiguidade e da atualidade, Theodomiro manifestou sua preocupação, pois já havia sugerido várias correções na apresentação do Projeto sobre seis pontos que resumidamente mencionamos a seguir: cita-se apenas, através do mundo, as transposições que deram certo e não são apresentadas aquelas que seguramente não funcionaram; diz-se que o Nordeste não tem água para beber, é preciso provar; discorda da média da vazão do rio São Francisco de 2800 m3/s e da uniformidade da vazão regularizada de Sobradinho de 2060 m3/s; e por fim, não se pode negar a importância da água subterrânea do cristalino no semi-árido, mesmo com baixa vazão e de qualidade ruim para uso humano. O fim do seu pronunciamento merece ser reproduzido: “Faço parte dessa burocracia destacada para servir à Nação, portanto, há 42 anos e tenho a consciência que poderei estar oferecendo o pescoço à guilhotina, mas, louvo-me nas palavras de Dom Helder Câmara para definir o marco de minha vida: “É graça divina, começar bem. Graça maior é persistir na caminhada certa. Mas a Graça das Graças é não desistir nunca. Assim há 42 anos peguei na rabiça do arado e jamais olhei para traz. “Vincit omnia veritas”, a verdade vence tudo”. O Velho Chico perde um grande baluarte, mas precisamos seguir seu exemplo, sua dedicação, seu saber, sua persistência, para que a sua morte não represente também a morte do sofrido Velho Chico, assumindo um papel de buscar suplantar a sua imensa lacuna e continuar a defender e lutar pelo seu grande ideal que sempre foi o alcance do desenvolvimento sustentável da bacia do rio São Francisco. Esse é o grande desafio de todos nós e principalmente do Comitê da Bacia do São Francisco, que deveria assumir a preservação de todo o acervo por ele construído e manter a sua imensa obra viva, a qual teremos oportunidade de melhor conhecê-la no livro “O Velho Chico, uma Paixão”, já na Editora para publicação. * Carlos Hermínio de Aguiar Oliveira é engenheiro Civil, ex-superintendente regional da Codevasf e doutorando em Geografia da UFS.