Dia 19 de abril, Dia do Índio. A criançada incorpora a personagem “pele vermelha”, seminua, com pinturas pelo corpo e adereços com penas coloridas – o chamado “índio genérico”. O estereótipo do ser humano in natura, que se mantém em perfeita harmonia com a Mãe Natureza, surge em meio à sociedade urbanizada do “homem branco”. A pergunta-chave desta entrevista com Clarice Novaes da Mota, antropóloga que estuda as comunidades indígenas de Sergipe há mais de 20 anos, é: “Ainda ocupamos hoje o abusivo papel de colonizador das aldeias indígenas?”. Além desta entrevista, quem comparecer à sede da Sociedade Semear na próxima quinta-feira, dia 4, poderá refletir um pouco mais sobre esta realidade, através da exposição fotográfica “Ciclos da Vida: O fio da memória indígena em Sergipe e Alagoas”. O evento, organizado pela ONG Associação Nação de Jurema, tem início às 19 horas, com a mesa redonda “A interação entre academia e os povos indígenas: projetos e histórias”. Por Waneska Cipriano INFONET NOTÍCIAS – Como é tratada a questão do índio no Brasil e, mais especificamente, aqui em Sergipe? CLARICE MOTA – É um problema grave esta questão de sempre se retrata o índio brasileiro como sendo o índio brasileiro, pois o que existe são vários grupos indígenas no Brasil, ou seja, grupos de descendência nativa, de povos que já estavam aqui antes do Descobrimento e que passaram por todo um processo de civilização, de ingresso nessa sociedade nacional. Assim, vários destes grupos, por causa do processo colonizador – não é nem civilizatório, pois civilizatório até parece ser uma coisa boa – perderam suas terras, parte de sua cultura, foram muitos prejudicados e, no entanto, conseguiram sobreviver como etnias. Eu, particularmente, tenho uma grande admiração por esse grupo, especialmente aqueles que sofreram um impacto muito grande, que são os grupos indígenas do litoral. Quando os colonizadores chegaram – os portugueses, depois os franceses, holandeses, etc – muitos grupos indígenas se refugiaram no interior do Brasil, Mato Grosso, Goiás, passaram para região Amazônica. Esses são os grupos que sofreram muito esse impacto, ou seja, sofreram de qualquer maneira, se modificaram muito. Mesmo assim, os daqui do litoral foram os que sofreram mais, inclusive alguns deles foram instintos, acabaram e ponto final. A gente tem que louvar aqueles que sobreviveram, bater palmas mesmo, porque conseguiram sobreviver. Eles vivem atualmente numa situação bastante difícil, precária, porque são comunidades que vivem em um território limitado e com grande dificuldade para conseguir o seu sustento. Os Kariris-Xocós, por exemplo, que são aqueles que eu conheço melhor, têm agora, depois de muitas lutas, um pouco mais de terras. Inclusive, só conseguiram um pouco mais de terra porque invadiram, pois se não tivessem feito isso estariam até hoje aí ao léu. INFONET – Existe algum tipo de apoio financeiros às comunidades indígenas do país e especificamente de Sergipe? CM – A gente batalha bastante, porque os Xocós de Sergipe, por exemplo, foram para a Ilha de São Pedro, ou seja retomaram a Ilha de São Pedro que era sua terra ancestral, e depois conseguiram reaver as terras que tinham se tornado Fazenda Caiçara/Belém. Agora eles têm bastante terras. Entretanto, não têm muito recurso para cuidar dessa terra. Ou seja, eles precisam de insumos agrícolas, tratores, irrigação – já que estão na beira do São Francisco – e o mesmo ocorre com os Kariris-Xocós. A Funai dá um pouco de auxílio, como um trator (que sempre quebra), luz elétrica, construíram uma caixa d´água, conseguiram um empréstimo bancário para melhorar as casinhas deles… Além disso, a Funasa colocou, tanto em uma aldeia quanto na outra, um posto de saúde, que funciona mais ou menos, mas que pelo menos tem dentista, médico e enfermeiro. Na verdade, o que eles precisam é de trabalho, eles precisam trabalhar a terra. Nós, inclusive, começamos a ONG Nação Jurema com o propósito de trazer essas informações sempre, de servir de veículo de informação entre as aldeias de comunidades indígenas e povo urbano, esclarecendo sobre as necessidades deles e possivelmente até conseguindo projetos de apoio às comunidades. Desde o ano passado, por exemplo, eu e o professor Ângelo Roberto Antoniolli, da Universidade Federal de Sergipe, estamos desenvolvendo um projeto chamado “Farmácia Viva”. Este projeto tem o objetivo de resgatar o conhecimento tradicional indígena, farmacológico e botânico. Este projeto está indo muito bem e já conseguimos inclusive bastante coisa. Nele, 25 indígenas Kariris-Xocós estão sendo treinados. Os Xocós não quiseram, pois ficaram com medo de biopirataria, que eu até entendo – apesar de que a gente, claro, não pretende fazer nada disto, mas sim dar apoio a ele. Entretanto, como as comunidade indígenas foram muito penalizadas, digamos assim, pela sociedade nacional, eles têm o pé atrás. INFONET – Culturalmente, Clarice, até que ponto o índio mantém seus costumes? Será que o “índio genérico” – com penas e pinturas pelo corpo – é hoje parte da cultura indígena ou eles fazem isto para o “homem branco”, para atender a uma satisfação da sociedade urbana? CM – Esta pergunta é bem interessante. Como eles estão realmente em contato permanente com a sociedade nacional – inclusive os Kariris-Xocós passaram grande parte da existência deles vivendo em colégios – é claro que eles tem que viver como a sociedade nacional. Eles têm que se vestir, ir à escola, conseguir emprego e tudo mais. Quando ele voltaram para dentro de sua terra tradicional, é claro que levaram estes mesmos hábitos. São índios – aí eu ponho entre aspas – “civilizados”. Entre aspas porque este processo civilizador é muito contraditório, paradoxal. Então, os índios do Brasil se encontram na seguinte situação: eles têm que parecer índios, de acordo com a nossa visão do índio genérico – quer dizer, a sociedade nacional cobra destes índios que eles sejam índios de penagem, de pintura corporal, caçando animal com arco e flecha – ou seja, a gente cobra uma coisa que a gente tirou deles. A sociedade nacional tirou deles a possibilidade de serem iguais a seus ancestrais e agora a gente está cobrando deles que eles sejam índios de cartão postal. Inclusive, a primeira coisa que uma pessoa falou quando viu a foto do cartaz desta exposição de quinta-feira, “Ciclos da Vida: O fio da memória indígena em Sergipe e Alagoas”, foi: “Ué! Este aqui não parece um índio”. Exatamente! Este é um dos objetivos desta exposição. É mostrar como os índios Kariris-Xocós e Xocós são agora, quem eles são no momento. Então, a gente não tem o direito que cobrar deles que eles vivam a nossa fantasia. Ao mesmo tempo eles mantiveram muitas de suas tradições. Eles têm, por exemplo, um ritual sagrado comunitário, da aldeia, que é secreto para nós. Eu acho que eles devem mesmo manter secreto para nós, exatamente porque é a sua tradição. É algo que eles conseguiram manter, apesar de tudo. Inclusive tem um dos módulos da exposição que se chama “No Ouricuri: (a)guardando o sagrado”. Na verdade, são as duas coisas, aguardando e guardando. As fotos foram tiradas por Newman Sucupira no momento da entrada no Ouricuri, ou seja, no momento da entrada do ritual, quando eles recebem a visita dos brancos. É bem no momento em que eles estão aguardando a entrada do ritual deles, que só começa depois que a gente vai embora. Então, eles estão no ritmo de espera, vivendo a vida deles, comum. Os brancos que vão à aldeia, normalmente esperam chegar lá e ver todo mundo pintado, de arco e flecha, Chegando lá encontram pessoas vivendo suas vidas, com roupas inclusive pobres, porque eles são pobres – materialmente falando, não espiritualmente falando -, ao mesmo tempo eles estão guardando um segredo, que é uma coisa importante para eles. INFONET – Sobre a exposição “Ciclos da Vida: O fio da memória indígena em Sergipe e Alagoas”, Clarice, qualquer pessoa pode participar? CM – Enquanto exposição fotográfica, o evento é aberto ao público, inteiramente grátis. Entretanto, na abertura, dia 4 de setembro, vai ter também uma mesa redonda, que tem início às 19h30min. Lá, iremos discutir justamente esta relação entre as comunidades indígenas e a comunidade acadêmica, ou seja, quem vai lá estudar, fotografar. O que resulta disso para nós e para eles? Esta é uma coisa essencial. É aberto ao público e estamos incentivando para que as pessoas participem do evento. Lá vamos ter José Nunes Nhenety, que é da comunidade Kariri-Xocó, contador de histórias. Também convidamos Marcos Terena, que é um líder indígena que está lá em Brasília com a Funai; José Augusto Laranjeiras, que é da Associação Nacional de Ação Indigenista da Bahia; Ivan Farias, da Procuradoria da República de Alagoas que trabalha com toda esta questão indígena; a professora Hélia Maria, do Museu do Homem Sergipano; e o professor Luís Alberto da Proex. Além disso, convidamos também a professora Beatriz, mas infelizmente ela não vai poder participar. O evento está abertíssimo ao público. Queremos público! Queremos que as pessoas venham discutir com a gente esta questão. Isto é muito importante. INFONET – Clarice, encerrando nossa entrevista, você acredita que existem meios de se reverter a questão indígena no Brasil? Como a sociedade pode colaborar? CM – Claro que sim. Em primeiro lugar, eu acho que a sociedade pode colaborar respeitando o modo de ser indígena, não exigindo deles mais do que eles possam dar no momento. Não exigindo que eles vivam a nossa fantasia. Não exigindo que eles revelem seus segredos, ou seja, não se intrometendo na vida deles. Respeitando a cultura, respeitando as lideranças e ajudando com projetos educacionais, projetos agrícolas, com tudo aquilo que proporcione, que ajude, na sobrevivência deles. Esta nossa exposição fotográfica, por exemplo, é também uma forma de homenageá-los pelo fato de que eles estão sempre abertos a serem fotografados, entrevistados, pesquisados, nunca pedindo nada em troca. O índio norte-americano, por exemplo, se você for em qualquer aldeia dos Estados Unidos, você tem que pagar. Eu estive recentemente nos Estados Unidos, no Novo México, fui visitar a aldeia Pueblo, e tive que pagar 10 dólares para fotografar e 20 dólares para filmar. Isto eles estão exigindo depois destes anos todos de sofrerem este tipo de pilhagem. Eu acho uma verdadeira pilhagem você fotografar, filmar, fazer, acontecer, publicar, ganhar dinheiro e não haver retorno nenhum. Assim, eu acho que o pesquisador, o cientista, o curioso, o fotógrafo, o escritor, tem que dar algo em retorno. Não é “umas roupinhas”, mas sim ajudar mesmo, em projetos que venham prover a sustentabilidade, projetos de autosustentação. Eu acho isto fundamental no momento. Saiba mais sobre a exposição “Ciclos da Vida: O fio da memória indígena em Sergipe e Alagoas”