Mario Cabral: “Roteiro de uma Aracaju Provinciana”

Lançamento, propriamente, não houve – pelo menos até agora. Quando o livro ficou pronto, definitivamente pronto, aí por volta de maio deste ano, os seiscentos e poucos exemplares da terceira edição do “Roteiro de Aracaju”, de Mário Cabral, começou a ser distribuído entre bibliotecas e pessoas interessadas. Deveria, sim, ter ocorrido um lançamento festivo ou até uma badalação maior pela Imprensa – afinal, Cabral, embora residindo em Salvador há muitos e muitos anos, não largou a sergipanidade e cultiva um inusitado amor pela terra dos cajus. O problema é que esta terceira edição enfrentou uma “via-crúcis” que bem daria um pequeno livro, se alguém se dispuser a contar. Quem deveria mesmo fazer isso ainda está viva, e bem viva, e já enfrentando um outro martírio. A heroína da história é, sem dúvida, Ana Maria Fonseca Medina, mulher de talento invulgar e atividades mis. Atualmente, é a chefe do cerimonial da Prefeitura de Aracaju, mas não desgrudas das coisas da cultura sergipana. Tanto assim que, no presente momento, tem uma preciosidade nas mãos: são cartas escritas por Hermes Fontes que contém pontos de vista capazes de mudar a história sergipana. Ademais, dá os últimos retoques para trazer das frias estantes as “Efemérides Sergipanas”, escritas ao longo da vida por Epiphânio Dórea. O primeiro volume aborda as efemérides dos três primeiros séculos de vida do Brasil e de Sergipe. Foi assim que há bem uns quatro anos atrás ela procurou a Funcaju na tentativa de reeditar o livro que Mário Cabral lançou em 1948 e teve uma segunda edição em 1955, como parte das comemorações do primeiro centenário de Aracaju. A presidência da Funcaju de então deu o sinal verde, mas o livro precisava primeiro ser digitado em computador – não se podia fotografar direto das duas primeiras edições por causa da atualização ortográfica e até porque as páginas já amareladas poderiam ser impecilhos para um bom trabalho gráfico. Digitar um livro de quase 300 e poucas páginas não é trabalho para poucos dias. Mas até que a digitadora – a hoje formada em design gráfico, Susyane Noronha – não demorou muito. Veio o problema da revisão. Quem está familiarizado com edição de livros ou jornais sabe que revisão é uma pedra no sapato, um chute no s…, mesmo. É preciso ter um cuidado redobrado, ainda mais levando-se em conta que Mário Cabral é…. bem, Mário Cabral, autor de uma prosa elegante, gostosa que entra na mente do leitor, como se fosse um vinho de safra rara. Mais tempo, portanto. Quando tudo estava pronto…. também estava pronto o mandato da presidência da Funcaju. Não ia dar mais para fazer por lá. No ano seguinte, Ana Medina retoma o projeto, agora pela então Secretaria de Cultura e Turismo – a SECTUR da época – que não se opôs em reeditar a obra. Como a SECTUR sempre esteve as voltas com questões de (falta de) orçamento, demorou um pouquinho para autorizar a gráfica a rodar o livro. Em dezembro de 2000, finalmente, saiu a ordem de serviço. A gráfica levou aí seus dois a três meses para aprontá-lo. Mas, aí veio a surpresa: o livro estava cheio de senões, de erros, de descuidos gráficos. O que aconteceu? Busca daqui, busca dali, descobriu-se o vilão, a própria gráfica que não teve o cuidado necessário de apresentar uma prova aos interessados. No caso, a própria Ana Medina. Quando se descobriram estas falhas, alguns exemplares já havia sido distribuído na própria SECTUR. Recolhe-se o livro para ver o que se pode fazer. E o melhor a fazer foi cuidar de reimprimir as páginas que apresentavam problemas. Mas, aí já mudou governo, já mudou de Secretário, a SECTUR já acabou… A briosa Ana Medina não esmoreceu e conseguiu um acerto financeiro para que o livro de Mário Cabral ficasse a contento. Ficou pronto em maio deste ano. A esta altura, o próprio Mário Cabral já nem cobrava pela terceira edição do seu magistral trabalho. Ana Medina deu sua tarefa por concluída, mandando ao autor alguns exemplares, fazendo distribuição com bibliotecas e escolas, etc. Não houve noite de autógrafos nem sequer noticiário na Imprensa. Mas, a terceira edição de “Roteiro de Aracaju” está aí, disponível, para quem quiser tomar conhecimento de uma Aracaju bonita mas provinciana, pequena mas agradável de se viver. São quase cinqüenta anos passados do primeiro lançamento. Descreve-se, portanto, uma Aracaju que pode soar estranha para os mais novos. Por exemplo, no capítulo “As Fontes”, a partir da página 109, o autor revela que as fontes se multiplicavam por todas as ruas e bairros – como a Fonte da Caatinga, a Fonte da Aroeira, a Fonta das Quitibeiras. Fontes? Pois é… Passamos a palavra ao querido Mario Cabral: “A maior e a mais famosa fonte pública era a Fonte da Nação. Ficava no meio da Rua do Geru, ao sopé do Morro de Areia (era o Morro do Bomfim – nota do jornalista), coberta por um telheiro. Era redonda, enorme, profunda, um vasto abismo protegido por uma borda de cimento enegrecido pelo limo e pelo tempo. Essa fonte nunca secou, sendo uma das mais antigas da cidade e uma das últimas que desapareceram.A fonte era imponente e servia a milhares e milhares de pessoas por dia que, pote ou lata à cabeça, iam buscar água naquele manancial (…) Outra fonte famosa era a de Dona Henriqueta, situada onde existia o Hotel Aracaju, a Rua São Cristóvão. Era esta a fonte que abastecia a cadeia pública, hoje Palácio Serigy. Os presos agrilhoados iam buscar água em ancoretas, sob a fiscalização de forte escolta policial”. Agora, fala a verdade: como Aracaju não tem mais fontes, você pode visualizar fontes de água na Rua Geru – naquele trecho coalhado de carros – e na Rua São Cristóvão, esta mesma por onde passam milhares de pessoas pelo seu Calçadão? Outra delícia é o capítulo dedicado aos transportes. Mário Cabral fala de um tempo em que os bondes eram puxados a burros: “Os bondes eram puxados por dois burros, tinham cinco bancos e comportavam, apenas, vinte passageiros. Subitamente, os burros empacavam, deitavam-se nos trilhos, faziam greve pacífica e não havia chicote que os arredasse dali. Então os passageiros desciam e apreciavam, entre divertidos e contrariados, a luta do boleeiro (o homem que conduzia o bonde, o homem da boléia) para “convencer” os animais de sua obrigação de puxar o veículo, a “viatura”, como diria um clássico da terra”. O capítulo dedicado ao rádio, ao teatro e ao cinema deixam-nos com aquela saudade, com aquela nostalgia de quem não viveu nada desta cidade. O capítulo dedicado aos tipos populares enche as vistas. Ele cita um bocado de gente do início do século e dedica três deliciosos parágrafos aos tipos da época em que escreveu o livro: Piaba, Dr. Leandro e Tou te Ajeitando. O escriba conheceu os dois últimos. Do primeiro, Mário Cabral conta a deliciosa história do seu fantástico apetite. “O homem come tanto que, certa vez, foi convidado a fazer uma refeição no Hospital de Cirurgia, perante a classe médica sergipana. Sua refeição, nesse dia, segundo testemunha ocular, constou de dois litros de feijão com farinha, um quilo de carne verde, uma dúzia de ovos, dois litros de arroz, seis mangas e duas latas de goiabada, marca “Peixe”, das grandes. Piaba comeu tudo, agradeceu e retirou-se. Piaba é assim. Quem duvidar pode fazer a experiência”. É melhor dar um ponto final aqui porque não dá para contar tudo o que, em letra de forma (corpo 10 ou 11), coube agora em 222 páginas. Para fechar o livro, Ana Medina foi atrás de algumas preciosidades: fotos! E que fotos… Uma delas, de oitenta anos atrás, mostra Mário Cabral fazendo a primeira comunhão. Outra, é mais moderna: a Rua João Pessoa, dos anos 50, já com o Edifício Mayara ao fundo, a Livraria Regina (meu Deus, como deixaram acabar a Regina…) de portas arriadas e carros vindo de lá para cá – a João Pessoa já era mão única. Dei água na boca em vocês também? Pois procurem a Ana Medina no gabinete do Cerimonial do Palácio Ignácio Barbosa para ver onde se consegue essa preciosidade… Por Ivan Valença

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