“O Purgatório do São Francisco”, por Washignton Novaes

O jornal “O Estado de São Paulo” publicou ontem, dia 20, na página 2 do primeiro caderno, artigo do jornalista Washington Novaes intitulado “O Purgatório do São Francisco”. Pela sua importância, transcrevemos o artigo na íntegra:

 

“Ao contrário do que seria lógico supor, a concessão de licença prévia (não autoriza implantação) ao projeto de transposição das águas do Rio São Francisco para o Semi-Árido setentrional não arrefeceu a discussão, muito menos a oposição de parte dos Estados da bacia hidrográfica. ONGs e Ministério Público protestam na Justiça, pelo menos um governador (Sergipe) anunciou que o fará. E as razões para questionar, de fato, são muitas.

Pode-se começar estranhando que, ao contrário do que exige a Resolução 1/86 do Conselho Nacional do Meio-Ambiente (artigo 5, inciso I), o Ibama não tenha começado pelo exame da alternativa de não executar o projeto: seria melhor ou pior? O parecer técnico do Ibama e a licença prévia não mencionam esse exame, embora sejam conhecidos e tenham sido muito discutidos pareceres do professor João Abner, da UFRN, e do professor João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco (Pernambuco), que consideram necessária a transposição, pois haveria água suficiente nas regiões a serem beneficiadas.

Também o professor Aldo Rebouças, da USP, tem dito que o problema hídrico no Nordeste não é de escassez, é de mau gerenciamento. Algum apoio está no próprio Relatório de Impacto Ambiental (Rima), ao mencionar que estudo, em 90 açudes, mostrou que 75% da água neles acumulada é perdida – por evaporação (pág. 48). E são principalmente açudes que as águas serão transpostas, embora o Estudo de Impacto ambiental (EIA), diga que será possível reduzir essa perda, já que o fluxo constante permitiria acumular menos água.
 

Também o exame de alternativas tecnológicas e de localização do projeto (obrigatório pelo artigo 9, inciso IV, da resolução 1/86) não se completa. O Rima primeiro menciona que “a este projeto deverão integrar-se várias iniciativas e soluções regionais para convivência com o Semi-Árido, como cisternas, poços e pequenos açudes” (mas sem explicitar como); depois afirma que cisternas para prover de água micro comunidades são adequadas “para áreas de ocupação esparsa e distantes das fontes”, mas não atendem “à produção de alimentos”; mais adiante, especifica que entre os pré-requisitos para entrar no projeto está a capacidade de oferecer água em quantidade suficiente para que os açudes receptores atuem como pólos de distribuição de água”, além de “garantia no fornecimento de água para atividades agropecuárias e para o abastecimento humano nas áreas vizinhas aos canais que serão utilizados para o transporte de água”.

O parecer técnico do Ibama ainda observa (pág. 9) que essas alternativas (cisternas e águas subterrâneas) são viáveis, mas não atendem ao “objetivo principal do projeto”, que é dar “garantia hídrica à região”, assim entendido o fornecimento para irrigação. Também ressalta que o EIA-Rima não fez “uma abordagem de compatibilidade dessas alternativas com o empreendimento, de forma a reduzir o volume de água a ser transposto”. Da mesma fora, pode-se dizer, não foi confrontado o custo da transposição com o custo de dotar todas as populações isoladas – que são as vítimas da seca – de cisternas de placas, que vários autores indicam ser de três a quatro vezes menor que o da transposição.

Quando se chega aos números das populações e áreas a serem beneficiadas, a confusão é grande. O Rima menciona, primeiro, 12 milhões de pessoas (pág.3); depois, 7, 24 milhões (pág 64); em seguida, 12,4 milhões (pág. 82); mais adiante, 9,02 milhões (pág. 117). O parecer técnico menciona 7,21 milhões, dos quais 4,65 milhões residentes em áreas urbanas (pág. 20).

A mesma imprecisão está presente nos números que se referem às áreas a serem beneficiadas pelo projeto. Num ponto do Rima se mencionam 161.500 hectares (pág. 83); em outro, 186 mil (pág. 122). E há outros.


Os críticos dizem que a vazão máxima do São Francisco a ser transposta para a “Área de Influência Direta” do projeto não será de 3,5% do total, nos momentos de pico (como diz o projeto), já que esse cálculo é feito sobre a vazão total. Mas 80% da vazão está reservada para a geração de energia elétrica; a transposição vai retirar de 24% a 47% da vazão restante.

A redução de água disponível para essa geração de energia implica perda de 2,4% ou 137 MWh, diz o Rima. Mas não diz quem arcará com esse custo. Também não menciona que acréscimos haverá nas tarifas de água, já que a transposição exigirá elevar a água centenas de metros, com forte consumo de energia. Serão os irrigantes (que hoje têm tarifas subsidiadas)? Ou será a sociedade, nas tarifas industriais e domiciliares? Não está esclarecimento nem no Rima, nem no parecer técnico, nem na licença.


O parecer aponta a possibilidade de problemas complexos com os solos que se pretende irrigar com a água transposta. À página 10, está escrito que 20% dos solos têm limitações para usos agrícolas; e, “somados aos solos litólicos, notadamente impróprios, respondem por mais de 50% do total”. Mais ainda, 62% dos solos precisam de controle, por causa da forte tendência à erosão. O parecer técnico chega a apontar (pág. 11) contradições do EIA-Rima nessa matéria de solos (pág. 11).

 

Muitos outros ângulos mencionados no parecer poderiam ser comentados, como o risco de disseminação de doenças, principalmente esquistossomose; possibilidade de conflitos entre uso para energia e para irrigação; os graves problemas de degradação ambiental do cerrado nas partes alta e média da bacia do São Francisco; questões com índios e com o patrimônio cultural. Mas não há espaço. A licença prévia está concedida, condicional no cumprimento de 31 exigências, todas elas complexas, no prazo de um ano. Mas as obras já está sendo licitadas”.

Portal Infonet no WhatsApp
Receba no celular notícias de Sergipe
Acesse o link abaixo, ou escanei o QRCODE, para ter acesso a variados conteúdos.
https://whatsapp.com/channel/
0029Va6S7EtDJ6H43
FcFzQ0B

Comentários

Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nosso portal. Ao clicar em concordar, você estará de acordo com o uso conforme descrito em nossa Política de Privacidade. Concordar Leia mais