O sol acordou Aracaju. O rio Sergipe está calmo, altaneiro e desafiante. Saveiros e botes, canoas e veleiros estão atracados no cais. Não a serviço de carga ou descarga. Nenhum saveiro carregado de açúcar ou de tijolos. Não há canoas de coco e melancias. Nem barcaças de sal, de sacas de farinha e de feijão. Não há atividades nos trapiches, armazéns e casas comerciais. Não se ouve a algazarra dos remadores e catraieiros, estivadores e carregadores. Tampouco o vaivém desusado de gente na feira. Apenas quitandas e botequins encontram-se abertos. A rua Aurora ou rua da Frente, calçada de pedra bruta, sempre movimentada, está quieta. Não de todo deserta porque mendigos e desempregados, vadios e desordeiros lotearam o cais e a Ponte do Imperador fixando, ali, suas residências. Domingo ocioso e de ociosidades. Um grupo de homens, vindo dos cortiços e bibocas do Beco do Açúcar, cruza a rua Aurora, costeando o cais em direção à ponte. Falam alto, vociferam insolências, riem risadas soltas. Hálitos, recendendo a cachaça. Param. Olham o rio. Vislumbram a Barra dos Coqueiros. Não param de tagarelar amenidades… Sem roubar a cena, a Ponte do Imperador mapeia, em toda extensão , a teia dos diálogos daqueles fanfarrões. Um deles olhou contemplativo para cima. Olhou longe… olhou perto, murmurando consigo mesmo. Ah! Esta ponte! Quantas histórias ela poderia contar! Quantos embarques e desembarques históricos e estrepitosos, dramáticos e espetaculares, políticos e festivos! Quantas cenas de amor, quantos beijos! Quantas brigas e rezingas, intrigas amorosas e tragédias vulgares! Os companheiros mergulham nas águas interrompendo seu devaneio. Endireitam o corpo. Apressam o passo. Arremessam-se nas águas, desfrutando, todos juntos, do banho matutino. De novo sozinha, esperou a chegada do povo para a tradicional retreta da praça do Governador (hoje Fausto Cardoso). Fisionomias belas ou feias, alegres ou tristes, roupas, cheiros, gestos, atitudes, as maneiras todas de ser, haveria de guardar. Enquanto espaço afetivo da cidade e das pessoas guardou tudo que pode guardar. Tanto que, no presente sem saber por quê, porque nunca fizera, olhou-se com atenção. Em outros tempos muitos escreveram sobre mim. Lembro-me de Genolino Amado, dizendo-me não ser “uma ponte no sentido próprio, como a Rio-Niterói ou outra qualquer;” do Mário Cabral, para quem “não sou bonita nem imponente” e do Freire Ribeiro, comparando-me “a um namoro encantado entre o céu e o luar”. É. Rigorosamente não sou uma ponte. Não levo ninguém a lugar nenhum. Não sou o que pareço. Não tenho medo de enxergar diante do espelho do tempo passado. O tempo se banqueteou. Fui o banquete. Servi de ancoradouro para o embarque de Suas Majestades Imperiais, D. Pedro II, Thereza Cristina e sua comitiva. Tantas personalidades e pessoas! Perdi a conta. Em outros tempos, fui Ponte do Desembarque, Ponte do Governador, Ponte Metálica ou do Presidente. E, sei lá mais o quê… Seja como for, sou a Ponte do Imperador. Horas sou política, religiosa e lúdica. Sou acima de tudo, social e sociável. E, aqui p’ra nós, escancaradamente democrática e popular. O tempo e as modernidades transformaram-me num ancoradouro das lembranças históricas de Aracaju. Sem perder a majestade acolho, no escuro da noite, mendigos e bêbados, prostitutas e travestis, gays e lésbicas, para um coquetel afrodisíaco de sonho e fantasia, sexo e orgasmos. Ora bola, esqueçam disto. Vejam-se como Cabral Machado me vê: “Ponte do Imperador; um caminho entre o firme da terra e o etéreo que é o sonho”. Autor: Yemansê / Maria Nelly dos Santos 4ª colocada no 2º Concurso de Crônicas sobre a cidade de Aracaju
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