“Inventário de Ranhuras” – por Vladimir Souza Carvalho

A ficção sergipana vai bem, obrigado. Afora os romances de Francisco Dantas, em nível nacional, e de Giselda Moraes, os contistas vivem um excelente período de boas gestações. Antonio Carlos Mangueira, Paulo Fernando Teles, Célio Nunes, entre os mais conhecidos, estão a quebrar, sempre e sempre, a monotonia provinciana com um bom livro, evitando longo hiato entre um e outro lançamento.  Nos últimos vinte anos, por exemplo, a produção vem atingindo níveis excelentes. 

            No meio destes nomes, o de Jeová Santana. Primeiro, com DENTRO DA CASCA (Aracaju, Segrase, 58 pp, 1993), marcado por dezoito contos, na maioria, curtos e introspectivos. Depois, com A OSSATURA (Recife, Editora do Autor [Edições Bagaço], 140 p., 2002), distribuído em vinte e cinco contos. Agora, enfim, INVENTÁRIO DE RANHURAS (Brasília, L.G.E. Editora, 183 pp., 2006), com trinta e cinco contos. De cara, uma verdade sumária: a cada livro, o número de contos aumenta, o autor se solta na sua narrativa, amadurecido pela experiência adquirida no decorrer de treze anos de publicações.

            INVENTÁRIO DE RANHURAS mantém-se, formalmente, na mesma linha do livro anterior, no que se relaciona, especificamente, a divisão de temas. Agora, a consagração para Porões, Lâminas, Guardados e Alcovas, denominações dadas a cada parte, em cuja fileira os contos se aconchegam. Em A OSSATURA, só para relembrar, as estantes ganhavam nomes outros: Iniciação, Véus, Agrestes e Lápides. Em relação a maneira de expor a história, o autor continua tangendo da linguagem coloquial e de rua alguns termos que ganham novo significado em seu texto, no difícil milagre da transformação do lixo em luxo. São inúmeros os substantivos, adjetivos e verbos utilizados em quase todos os contos, como também frases/ditados populares e termos compostos, no mesmo nível, comuns no dia a dia das camadas mais baixas, na óptica da pirâmide social tradicional. Dir-se-ia que essa característica marca, de forma contundente, a pesquisa do contista que não se afasta do suor do povo, fiel às suas origens de menino do interior. Mas, o autor não é só um interiorano que não deixa morrer o passado. Há, nele, também, e com forte dosagem, o autor-profissional, mestre de literatura, trazendo à tona, aqui e ali, textos dos mais diversos, de inúmeros autores, como se servissem para melhor sedimentar o fato na textura do conto. Em A OSSATURA, os textos citados eram essencialmente bíblicos. Isto é, a linha, do novo livro, no ponto de vista formal, permanece idêntica à adotada em A OSSATURA, como se mantém uniforme as semelhanças, meramente formais, entre Algumas notas do caderno de Melkborges, de A OSSATURA, com Relatos Frios, de INVENTÁRIO DE RANHURAS.  Depois, no próprio título, a influência do professor parece guiar o contista. 

            Assim visto, analisado e tocado, é fácil afirmar que Jeová Santana, apesar da pouca idade (nascido em 1961) no seu terceiro livro, parece ter atingido, na ficção, o apogeu da maturidade, ao se fixar numa forma própria, toda sua, de abordar os casos narrados. O autor encontra seu estilo, ou melhor dizendo, o contista não é mais o principiante de DENTRO DA CASCA. Evoluiu em A OSSATURA, sem conseguir, em INVENTÁRIO DE RANHURAS, superar, no aspecto, o livro anterior, pela linha mantida, desde a mistura do popular com o erudito, até a divisão dos contos em estantes próprias. A manutenção da mesma linha do segundo livro evidencia que Jeová Santana pode ter encontrado o seu caminho na ficção curta. 

            Assim vejo INVENTÁRIO DE RANHURAS, num quadro escancaradamente formal. Alguém poderia indagar pelo conteúdo dos contos. Excelente pergunta. O conteúdo dos contos. Sim, o conto é a mistura da história [curta], com a maneira de narrar. O fato pode ser tolo, banal, como pode se alçar à condição de complexo ou complicado, nos mergulhos em temas repetitivos, de milhares de anos, como, morte, amor, ódio, caridade, pobreza, riqueza, etc. e etc, a exigir do contista um foco especial. O modelo está, intacto e estático, a sua frente. O contista escolhe o melhor ângulo para a foto. Digo, para o seu narrar. Afasta-se um pouco para focalizar a paisagem, ou, aproxima-se, o bastante, para dar realce a um algum aspecto em si, do objeto. A ocorrência destacada tanto se passa no meio rural, como numa rua afastada do centro, numa cidade do interior, como na capital. Para cada local, uma paisagem específica. Em INVENTÁRIO DE RANHURAS se registram até cenas e paisagens parisienses, ao lado, entre outros, de fatos ocorridos no [Conjunto] Marcos Freire, na mistura de Aracaju com Paris, sem esquecer o Engenho Marcação, lá, atolado na memória do menino que se transformou em contista. Dessa combinação, da história com a forma, o conto marca ou não o leitor, para o qual se destina. Prende a sua atenção ou o leitor perde a concentração na sua leitura. Aí o ponto nevrálgico. O conteúdo é essencialmente subjetivo, variando de acordo com a cabeça/mundo de cada um, como a chita varia pelo seu colorido. O bom conto vai até as profundezas da mente, deixando marcas, como a do ferro quente no lombo do boi. A chita enche os olhos pelas variedades de cores. Eu mesmo, lendo e relendo INVENTÁRIO DE RANHURAS, aponto Menina no telhado, Macacos, Os degraus e O homem ideal como os melhores, pelo quadro que cada um exibe, aspectos da vida que carregam, e, sobretudo, pelo impacto que o arremate produz. Certo que o gosto é profundamente subjetivo. Há os que adoram do pirão de fato, gorduroso, carregado de sal, que as cozinheiras do interior são tão pródigas em fazer. Há os que, em contrapartida, preferem o prato delicado e raso de restaurantes badalos nas crônicas sociais. Ou seja, é matéria na qual a certeza da matemática não funciona.  

            O terceiro livro de contos de Jeová Santana reitera sua excelente posição entre os melhores contistas sergipanos, na atualidade vivida, já manifestada, anteriormente, com DENTRO DA CASCA, depois com A OSSATURA e, agora, confirmada, com INVENTÁRIO DE RANHURAS.            

 

(*) O autor é pesquisador e contista.

Portal Infonet no WhatsApp
Receba no celular notícias de Sergipe
Clique no link abaixo, ou escanei o QRCODE, para ter acessos a variados conteúdos.
https://whatsapp.com/channel/
0029Va6S7EtDJ6H43
FcFzQ0B

Comentários

Nós usamos cookies para melhorar a sua experiência em nosso portal. Ao clicar em concordar, você estará de acordo com o uso conforme descrito em nossa Política de Privacidade. Concordar Leia mais