MEU QUERIDO DIÁRIO – Gustavo Aragão

“Querido diário. Sou a Clara, tenho a pele alva, meio rosada, também sou um pouco gordinha… – escreve meio envergonhada – meus olhos são cor de mel, hum… – lambe os lábios, já de água na boca ao lembrar do sabor do mel – na escola e na rua em que moro todos me chamam de uma série de apelidos: bolo fofo, bola sete, bolinha, azeitona, entre outros mais. Eu me sinto muito triste, pois me acho bonita, assim, do jeitinho que Deus me fez. Por que será que é tão difícil para as pessoas nos aceitarem como verdadeiramente somos?…”

       Quando ela menos esperava, surgiram palavras nas linhas da folha na qual escrevia. Todas aquelas palavras, que surgiam misteriosamente, iam explicando as suas perguntas. A menina ao ver as palavras aparecerem do nada, espantou-se, e não sabia o que fazer. Por um instante ela largou o lápis em cima da cama e afastou-se do seu diário, mas após alguns segundos por ser muito curiosa, voltou para cima da cama e foi se aproximando lentamente do seu caderninho, bem de leve foi folheando-o, tentando encontrar a página, que havia perdido ao soltá-lo, na hora do susto. Depois de passar ligeiramente várias folhas, encontrou a página na qual escrevia. Nesta, tinha a resposta de sua pergunta e uma linda mensagem:

      “Clarinha, você é realmente linda do jeito que é. Todos os seres humanos possuem uma beleza única. Cada um tem uma beleza diferente. Todos nós somos diferentes uns dos outros, por isso fica tão difícil de compreender um ao outro. Entendeu?”

       – É, acho que entendi… Mas ainda eu não entendi como você pode escrever para mim? Nunca vi um diário escrevendo antes – falou a menina meio confusa, com uma voz terna. O diário, porém não a respondeu. Então ela percebeu que deveria escrever nele caso quisesse se comunicar. Eram as palavras que intermediariam tal comunicação. Escreveu nele. Esperou alguns instantes, até que a resposta apareceu, espontaneamente, desenhada sobre as linhas mágicas daquele extrovertido diário. Ele respondeu: “Essa é uma história muuuito longa. O que importa é que agora posso ajudá-la. Sempre que precisar de mim, estou aqui para responder todas as suas perguntas. Farei o possível e o impossível para poder respondê-las, mas é necessário que você escreva. Tá legal? E eu disse entusiasmada: “Como quiser. Vou lhe escrever uma coisa que me aconteceu há três dias. Eu estava indo para a escola a pé, quando me deparei com uma menina que estuda na oitava série, ela tinha a fama de tomar o lanche de todas as crianças menores que ela. Chama-se Bárbara. Naquele dia, eu tinha levado, em minha pasta: um pacote de biscoitos, um iogurte, um refrigerante e duas maçãs bem vermelhinhas, doces. Só que ao passar por mim, ela disse: “Ei! Bolinha, Azeitoninha verde! O que você trouxe, hoje, para lancharmos, hem?” Ela era puro sarcasmo. Como tinha dom para a brutalidade e para a tortura. Parecia se revestir com os ares espartanos.

Informei-lhe que não havia levado nada, porque estava fazendo um regime. Mas ela não acreditou no que eu disse. Riu-se com desdém. Seus olhos arderam-se como brasas. Encarei-a. Não baixei minha cabeça, pois eu tinha que enfrentá-la. Ninguém tinha coragem de enfrentá-la, mas eu tive e não me arrependo.

Ela parecia um balão inflado. Creio que ela tenha pensado: “Quem essa menina pensa que é para me encarar desta maneira?” Não falou mais nada. Inflada estava e assim permaneceu até que se retirou, em direção à sala de aula.

Eu havia me transformado num verdadeiro guarda-costas de mim mesmo, isto me surpreendeu, sobremaneira. Não conseguia acreditar que havia me encorajado a tal ponto. Nunca havia tomado uma atitude como esta, de confronto. Meu sangue parecia circular diferente, dando-me um calor renovado. Era incrível a sensação de destemor.  Mas ela não deixaria tal situação sair tão barato, imaginei. Fui para a sala, com a certeza de que não podia esmorecer, tinha que manter a pintura da coragem que tomara a minha face. Teria que aprender a encará-la noutro ambiente, de maneira sutil, porém demonstrando-me fortaleza.

É chegada a hora do recreio, o magno instante dela exercer sobre mim um tormento tal qual Jesus sofrera, no deserto.

Pareceu-me a minha sombra, cercava-me por onde eu ia. Parecia um mosquito a me azucrinar as horas. Fui à cantina e me defrontei com um dos meninos mais valentes da escola. Ele era um armário. Era enorme, forte, tinha uma cara de dar medo. Ele mascava um chiclete com tanta força e fazia bolinhas, as quais estourava num mover brusco dos lábios. Aquilo me lembrou o vô Odilon: homem rude, interiorano, que achava que mulher tinha que ser submissa e obedecer os mais velhos, fossem eles quem fossem. Repetia isso, todas as vezes que nos renegávamos a ajudá-lo em algum serviço doméstico. Só de ter lembrado da fisionomia dele, me deu uma tontura… Até que Bárbara, repentinamente, me interpelou dizendo: “Ô, bolo fofo, tá pensando que isto vai ficar assim, é? Me dá um pedacinho do seu lanche” – imediatamente arrancou-me das mãos, com ferocidade, a sacola, onde costumava levar meu lanche. Apenas disse-lhe: “Bárbara, eu o trouxe, como sempre costumo trazer. Minha mãe colocou para mim. Gostaria muito de poder compartilhá-lo com você…” – Repentinamente me subiu uma vontade de descarregar toda a minha insatisfação reprimida há anos. Queria jorrar os impropérios que me fervilhavam por dentro. Mas não sei o que aconteceu comigo. Não sabia, decerto, para onde teria ido a coragem que havia me tomado, logo que cheguei na escola, no início da manhã.  Dei para ela meu lanche e ainda disse: “Desculpe-me se a ofendi. Eu não queria. Juro. Eu só queria que você se tornasse uma pessoa boa, que respeitasse os outros e parasse de tomar o lanche dos seus colegas. Não posso julgar-lhe, mas posso tentar ser sua amiga. Somos quase da mesma idade, estudamos na mesma escola… E ela me respondeu: “Já chega! Vamos deixar de conversa mole. Não gosto de sentimentalismos. É claro, que podemos nos tornar amigas, contanto que você, nos recreios, divida o seu lanchinho comigo. Se assim o quiser, negócio garantido.” E eu completei meio receosa e confusa com a minha atitude:“Desde que você não permita que os outros zombem de mim, colocando-me apelidos que não gosto. Negócio fechado.”

     Depois de alguns segundos de silêncio. Um silêncio que em mim fora expressivo, porém conflituoso. Pensei, em fração de segundos: “Como posso me tornar amiga desta menina, que tanto molestava as pessoas. Tenho que ter coragem para enfrentá-la. Não posso esmorecer, agora.” Olhava para ela e via a brutalidade saltar de seus poros e refleti: “Não pode ser de todo uma menina ruim. Algo deve afligi-la para que possa tomar as atitudes que toma. Ou será uma questão de índole? Não sei o que faço… Senhor me ajude….” Nossos sorrisos quebraram o silêncio.  Demos as mãos e dissemos juntas: “Amigas? Sim, amigas!” Sabe diário, até hoje me pergunto se fiz a coisa certa. Mas quando olhei para ela, após a minha reflexão, percebi algo nela, com o que me afeiçoei. Não custa nada tentar não é mesmo? Na vida corremos riscos a cada segundo. É preciso que nos arrisquemos para termos, em algum momento do futuro, a certeza de que progredimos. Cheguei a pensar que nunca arranjaria amigas. As pessoas pareciam não gostar de mim. Todas as minhas colegas de classe me evitavam. Eu achava que, por eu ser gordinha, as pessoas nem me notavam. Depois da minha discussão com a Bárbara pude perceber que o que estava acontecendo, era que eu ainda não havia tido uma chance para falar aos outros.  Então, percebi que o que importa é que nós sejamos pessoas de bem, que respeitemos uns aos outros…” “É, Clara, às vezes os seres humanos julgam os outros por atitudes que poderiam ser relevadas para se manter o bem-estar entre eles. A solidão e a discriminação são sentimentos muito difíceis de suportar. É claro que não podemos nos submeter a tudo nem a todos. Mas vezes há em que se torna necessário um pouco de resignação para se tentar conviver. Quando precisar de mim estou aqui pronto para conversar com você, através da escrita. Até mais!!!” – expressou-se o diário por meio das suas mágicas palavras. Respondi: “Até mais, meu querido diário. Muito obrigado pelas suas frases, gostei muito delas.”

A menina desenhou um lindo coração e o coloriu com lápis de cor vermelho, fazendo algumas florzinhas, no canto direito da folha. Após ter acabado de fazer os desenhos e de colori-los, surgiu em baixo do texto um sorriso e um botão de rosa ilustrados.
 
Por Gustavo Aragão

 

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