Pesquisa de promotor aborda abuso do poder religioso nas eleições

Membro do MP de Sergipe desenvolve pesquisa sobre abuso do poder religioso nas eleições (Foto: divulgação)

O pesquisador e promotor de Justiça Peterson Almeida Barbosa, do Ministério Público de Sergipe, está desenvolvendo uma pesquisa que aborda o abuso do poder religioso nas eleições.

Na visão do pesquisador, quando um líder religioso decide ingressar na política, pelo menos dois princípios constitucionais entram em rota de colisão: o da liberdade religiosa e o da legitimidade das eleições.

Para entender melhor esse fenômeno e propor alternativas capazes de solucionar o conflito, Peterson está desenvolvendo uma dissertação de mestrado inovadora, que deverá ser publicada em breve com o tema “Abuso do Poder Religioso na Atuação Política das Igrejas Neopentecostais no Brasil”.

O promotor concedeu entrevista ao Núcleo de Comunicação do MP. Confira: 

Núcleo de Comunicação (NC): O que o levou a pesquisar sobre o abuso do poder religioso no processo eleitoral?

Perterson Almeida Barbosa (PAB) – Eu despertei para esse tema nos idos de 2016, quando, a convite do então procurador-geral de Justiça, Rony Almeida, criamos a Coordenadoria de Apoio aos Promotores Eleitorais – COAPE. A partir daí, aprofundei os estudos em direito eleitoral, participei de congressos, tive contato com coordenadores do país inteiro. A doutrina e a jurisprudência ensaiavam a criação de uma figura nova, que é o abuso do poder religioso. Hoje, as formas legisladas são abuso de poder econômico, político e midiático. Percebemos que membros de algumas igrejas, especialmente as neopentecostais – terceira onda do evangelicalismo no Brasil, que se diferenciam das protestantes históricas – começaram a responder a ações judiciais, inclusive tendo mandatos cassados, porque estariam transformando púlpitos em palanques. Havia notícias de que materiais de campanha eram distribuídos na saída dos templos… Ou seja, os pastores passaram a exercer um inegável poder de controle sobre a consciência do eleitor. Essas questões foram levadas à justiça eleitoral que, por analogia, aplicava a figura do abuso do poder econômico.

NC – Por que “especificamente as igrejas neopentecostais”?

PAB – Eu escrevi um artigo que vai sair na revista da UniCuritiba e que responde bem a essa pergunta. Ao longo da pesquisa, eu não vi, na jurisprudência ou na doutrina, outros segmentos religiosos no polo passivo. Por exemplo, não há um padre, um líder espírita ou de religiões de matriz africana. Somente há pastores das igrejas neopentecostais. Eu tento explicar isso a partir das teologias que eles adotam, que é a da prosperidade e do domínio. Mas o grande problema é que essas igrejas trabalham muito com o centralismo. A bem da verdade, os fieis não participam das decisões, não há uma assembleia para definir quem será o candidato. Os líderes definem tudo. Em 20 anos, o movimento neopentecostal se expandiu significativamente. Eles são donos de grandes emissoras de TV e de 25% das emissoras de rádio. É um império gigantesco, associando poder econômico, poder midiático e poder político. Representam 23,5% do Congresso Nacional, sem falar em outros cargos que ocupam na administração pública. É um fenômeno que está surgindo e sobre o qual a Justiça Eleitoral precisa ter um controle.

NC – Há como estabelecer equilíbrio entre liberdade religiosa e normalidade/legitimidade das eleições?

PAB – A teoria de Robert Alexy [jurista alemão] aponta saídas para um equilíbrio, uma ponderação entre esses dois fundamentos. Minha tese é propositiva. Penso que não adianta apenas apresentar o problema. O fenômeno sociológico existe, está posto. Precisamos de alternativas viáveis.

NC – Quais seriam essas alternativas?

PAB – Realizei um rápido estudo de Direito comparado. Nos EUA, por exemplo, as coisas são bem diferentes. Se um reverendo entra na política, a igreja dele deixa de receber o que eles chamam de isenção fiscal. Aqui no Brasil, nós temos imunidade tributária, que é a mesma coisa. O capital das igrejas é imune, daí porque é um capital altíssimo. Se lá nos Estados Unidos uma igreja entra na política, passa a pagar imposto. Deixa de ser Igreja e passa a ser empresa. É uma saída, para que as igrejas não se tornem sucursais dos partidos políticos. Outro mecanismo interessante, adotado em Portugal, no México e alguns outros países da América Latina, é a desincompatibilização, que o código canônico já instituiu na Igreja Católica. Explico: se você é pastor e quer ser candidato, precisa se afastar das atividades eclesiais por, digamos, 6 meses; depois, pode retornar. Porque é desleal com outros candidatos que, na véspera da eleição, o sujeito fique pregando para 4 mil pessoas. Isso não é justo. Ele pode frequentar o seu culto sem problema nenhum, mas pegar o microfone para falar não deveria. Então a desincompatibilização é uma alternativa. O código canônico, diga-se de passagem, é até mais rigoroso e prescreve que o padre que entra na política não retorna mais ao sacerdócio. A ideia é que o eleitor seja guiado apenas pela própria consciência.

NC – A legislação atual não tem dispositivos capazes de garantir a normalidade?

PAB – A legislação eleitoral já tem algumas amarras, mas eu acho que são insuficientes. Por exemplo: não é mais permitida a doação de pessoas jurídicas a partidos políticos (ADI 4560, que tramitou no STF); também é proibida a distribuição de material de campanha em locais de interesse público. De acordo com a lei, os templos religiosos são locais de interesse público, mas é possível ter um fiscal da justiça eleitoral em cada templo para verificar se alguém está distribuindo santinho? Só para você ter ideia da dificuldade, a principal igreja neopentecostal do Brasil está presente em 121 países; um templo é inaugurado a cada 48 horas; eles têm representação em todos os municípios do Brasil, do mais remoto ao maior.

NC – Essa magnitude despertou o interesse dos partidos?

PAB – Sem dúvida. Começou a haver uma cobiça dos partidos políticos, uma dependência recíproca. Fora alguns casos, já constatados, de políticos que, no poder, se valem de sua fé para ditar políticas públicas. As políticas públicas não têm que ter credo, não têm que ter preferência religiosa. Não podemos, por exemplo, ter um projeto de lei isentando dízimos e ofertas da incidência do imposto de renda; ou instituindo o gospel como atividade cultural. Isso é meio perigoso. Política pública não pode ter essa coisa. O administrador não pode instrumentalizar o poder conforme sua fé.

NC – O senhor encontrou casos concretos de utilização da máquina pública em benefício de determinado segmento religioso?

PAB – Sim. Há um caso em que o prefeito responde a uma ação civil pública por ter reunido a guarda municipal para fazer um censo religioso. A ideia era a seguinte: quem for membro da igreja e estiver precisando de serviços de saúde terá prioridade. É algo inadmissível.

 

NC – O senhor acredita que isso tem raízes históricas?

PAB – A relação entre estado e igreja não é novidade nenhuma. O que está havendo hoje é o que alguns autores chamam de pós-secularismo. Só mudaram os personagens. Naturalmente a discussão está aberta. É preciso pensar sobre uma solução para isso. O voto deve ser uma simples expressão da cidadania, não tem que ser uma coisa guiada por um líder religioso. As pessoas vão a uma igreja precisando de um socorro, de um conforto espiritual, querendo ouvir uma palavra acolhedora. Essas pessoas não querem ouvir pedidos de votos de quem está interessado no poder político. E um detalhe: são igrejas que crescem sobretudo nos estratos mais pobres da população, onde o Estado não chega, onde as pessoas são menos escolarizadas. Elas cumprem um papel importante? Claro que sim! Desenvolvem atividades assistenciais, ajudam a resgatar vidas. Há pessoas que só conseguem sair de situações adversas se alguém lhes tocar o coração e existem pastores que são homens verdadeiramente santos, mas, como tudo na vida, tem um lado ruim. Então, é preciso que a legislação estabeleça alguns limites, como aqueles que eu já mencionei.

NC – Por que ir ao parlamento falar sobre a pesquisa?

PAB – Fui saber a opinião dos parlamentares. Eu me despi de qualquer preferência política e religiosa, elas não importam nesse momento. Eu estudei o fenômeno. Pretendo ir à Assembleia Legislativa, além de conversar com alguns pastores. É preciso acolher os mais diversos pontos de vista e estabelecer um processo dialético. Isso é fundamental para a produção científica.

 

Com informações do MPE

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