Ditadura: MPF recomenda que Forças Armadas não façam manifestações

 

Os comandos das Forças Armadas têm prazo de dois dias, a partir do recebimento, para responder à recomendação (Foto: MPF/SE)

Por dever de obediência à Constituição brasileira, militares das Forças Armadas brasileiras não podem tomar parte em qualquer manifestação pública, em ambiente militar ou portando fardas, em comemoração ou em homenagem ao período de exceção instalado a partir do golpe militar de 31 de março de 1964. A recomendação está em um documento que foi enviado para os comandantes das três Forças Armadas em Sergipe, para que se abstenham de promover qualquer ato do tipo e que adotem providências para que todos os militares subordinados a eles cumpram a medida.

O documento foi assinado pela procuradora Regional dos Direitos do Cidadão do MPF/SE, Martha Carvalho Dias Figueiredo, pela defensora pública Federal da Defensoria Pública da União Patrícia Veira de Melo Ferreira da Rocha, pelo presidente da OAB-Sergipe, Inácio José Krauss de Menezes, e pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Sergipe, José Robson Santos de Barros. O envio das recomendações faz parte de uma ação coordenada do MPF e conta com a participação de diversas unidades do órgão no país.

As recomendações foram encaminhadas ao Comandante da Aeronáutica em Sergipe, o chefe do Destacamento de Controle do Espaço Aéreo, Capitão Especialista em Controle de Tráfego Aéreo André Marcelo da Silva, ao Capitão dos Portos em Sergipe, o Capitão de Fragata Alessandro Pires Black Pereira, e ao Comandante do Vigésimo Oitavo Batalhão de Caçadores do Exército, o Tenente Coronel José Fernandes Carneiro dos Santos Filho.

Os comandos têm prazo de dois dias, a partir do recebimento, para responder à recomendação. Em caso de desobediência de militares, batalhões ou tropas, diz a recomendação, os comandantes devem identificar os responsáveis e informar ao MPF para as providências cabíveis.

Legislação

Os regulamentos disciplinares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica consideram transgressão que qualquer militar participe, fardado, de manifestações de natureza político-partidária. No caso da Marinha, é vedada a manifestação pública de seus integrantes sobre assuntos políticas e, no caso da Aeronáutica, é também proibido participar de discussão sobre política ou religião que possa causar desassossego. Para o MPF, comemorações em homenagem à ditadura militar violam os regulamentos e também podem constituir ato de improbidade administrativa, por atentarem contra os princípios da administração pública: moralidade, legalidade e lealdade às instituições. As punições previstas na lei de improbidade vão de demissão do serviço público a suspensão dos direitos políticos, além de multas.

O documento menciona as declarações do porta-voz da presidência da República no último dia 25 de março, que confirmaram ordem presidencial para que o Ministério da Defesa faça “as comemorações devidas com relação a 31 de março de 1964, incluindo uma ordem do dia já aprovada pelo nosso presidente”. E ressalta que “a homenagem por servidores civis e militares, no exercício de suas funções, ao período histórico no qual houve supressão da democracia e dos direitos de reunião, liberdade de expressão e liberdade de imprensa viola a Constituição Federal, que consagra a democracia e a soberania popular”.

Para o MPF, a OAB e a DPU, o presidente da República se submete à Constituição e não tem o poder discricionário de desconsiderar todos os dispositivos legais que reconhecem o regime iniciado em 1964 como uma ditadura. Além disso, o país já reconheceu em várias instâncias o dever de reparar as vítimas de abusos cometidos durante esse período, o que implica que nenhum governo pode “infligir a elas novos sofrimentos, o que é certamente ocasionado por uma comemoração oficial do início de um regime que praticou graves violações aos direitos humanos”

O MPF considera, na recomendação, além dos mandamentos impostos pela Constituição brasileira, uma série de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, que determinam o respeito à democracia e consideram que é obrigação de qualquer governo defendê-la. Cita, entre os documentos internacionais, o pedido feito pelo Brasil e pelos Estados Unidos em 2018 para que a Venezuela fosse suspensa da Organização dos Estados Americanos por violação de preceitos democráticos e a Declaração do Grupo de Lima, assinada pelo atual governo em janeiro de 2019, exigindo o restabelecimento da democracia na Venezuela. “A exigência de respeito à democracia em outros países do continente não é condizente com homenagens a período histórico de supressão da democracia no Brasil”, diz o texto do MPF.

A recomendação enumera também dispositivos constitucionais, conclusões da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos em que foram reconhecidas as graves violações de direitos humanos da ditadura militar no Brasil. Entre os documentos citados, está o ofício do Ministério da Defesa de 19 de setembro de 2014, que reconheceu “a existência das lamentáveis violações de direitos humanos durante o regime militar” e registrou que os Comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica não questionaram as conclusões da Comissão Nacional da Verdade (CNV), por não disporem de “elementos que sirvam de fundamento para contestar os atos formais de reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro”.

A CNV, além de reconhecer os atos de exceção praticados pela ditadura militar que não foram contestados pelas Forças Armadas brasileiras, emitiu recomendação proibindo “a realização de eventos oficiais em comemoração ao golpe militar de 1964”. Na Constituição de 1988, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o poder constituinte também fez constar o reconhecimento expresso das violações dos governos militares e, pela lei 9.140/1995, o Brasil reconheceu como mortas as pessoas que, acusadas de participação em atividades políticas entre 2 de setembro de 1961 e 5 de outubro de 1988 e detidas por agentes públicos, estivessem desde então desaparecidas.

Na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em dois processos sobre crimes da ditadura, o estado brasileiro também reconheceu sua responsabilidade pelos atos de agentes públicos durante o período de exceção: no caso que trata da guerrilha do Araguaia, a defesa do governo confirmava o “sentimento de angústia dos familiares, pois considera direito supremo de todos os indivíduos ter a possibilidade de prantear seus mortos, ritual no qual se inclui o enterro de seus restos mortais”; no caso de Vladimir Herzog, o Brasil admitiu expressamente perante a Corte a sua responsabilidade pela detenção arbitrária, tortura e assassinato do jornalista, nas dependências do Doi-Codi, em 25 de outubro de 1975.

A recomendação do MPF lembra aos comandantes que a Constituição Federal de 1988 restabeleceu a democracia após o período ditatorial entre 1º de abril de 1964 e 15 de março de 1985, “durante o qual o país foi presidido por governos militares, com supressão das eleições diretas e dos direitos decorrentes do regime democrático”. Assinala ainda que a aplicação do princípio democrático não se resume às eleições periódicas, mas rege o exercício de todo o poder e que a Constituição repudia o crime de tortura e considera inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o estado democrático.

Fonte: MPF/SE

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