A Nakba de 1948 e Palestina de 2023

Katty Cristina Lima Sá

Mestre em História Comparada pela UFRJ

Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS)

 

Crédito da imagem: Gravura da HQ “Palestina: uma nação ocupada” de Joe Sacco (2000), p.15.

 

A Palestina foi ocupada pelos exércitos muçulmanos por volta do ano de 637 EC. A expansão do Califado seguiu até a Península Ibérica sem o objetivo de promover a conversão forçada dos conquistados; por isso, firmaram-se tratados que garantiam a liberdade religiosa e os direitos das populações de áreas anexadas. O mesmo sucedeu em Jerusalém, onde o Califa Umar (586-644) e o Patriarca Sophronius (560-638) assinaram o acordo que garantiu a coexistência pacífica de judeus, cristãos e muçulmanos palestinos por séculos. A partir disso, desenvolveu-se uma cultura própria nesta região, que permanecia ligada ao espaço intelectual e cultural muçulmano.

Já na Europa, em fins do século XIX, o movimento sinionista impulsionou a ideia de criar um lar judeu na “terra prometida”, tendo por lema “uma terra sem povo para um povo sem terra”. No entanto, a Palestina nunca esteve despovoada. Para fundar um Estado na “terra sem povo”, foi realizada a remoção forçada de 750 mil palestinos a partir de 15 maio de 1948. Esse episódio ficou conhecido entre os exilados como Nakba, ou “Catástrofe”, e marcou o início de um processo ainda em andamento: o sofrimento de um povo enquanto refugiado, privado de direitos básicos, de uma cidadania. Ademais, a Nakba apresenta mais uma camada no conflito palestino-israelense: tentativas de apagamento do passado daqueles que não são israelenses.

Esse empreendimento pelo esquecimento foi denominado pelo historiador Nur Masalha de “memoricídio”. Um exemplo disso está na mudança de nomenclatura de regiões da Palestina feita por geógrafos e arqueólogos europeus e estadunidenses que, em seus trabalhos acadêmicos, renomearam áreas com nomes hebreus e as delimitaram segundo as descrições do Antigo Testamento. Quaisquer alterações realizadas ao longo dos séculos por outros povos que se estabeleceram na região foram ignoradas. Os vilarejos árabes também foram destruídos; em seu lugar, foram construídos assentamentos judeus com nomes hebraicos.

A construção do espaço se fez ainda com o reflorestamento da Palestina realizado pelo Fundo Nacional Judaíco (FNJ). O FNJ promoveu um programa de construção de parques florestais em que a vegetação nativa foi derrubada e, em seu lugar, foram plantados pinheiros, ciprestes e outras árvores coníferas originárias dos Alpes Suíços, a exemplo do ocorrido no Monte Carmel. A justificativa para tanto foi a criação de memoriais para as vítimas do Holocausto, o que foi feito em conjunto com a destruição do passado árabe. Cabe ressaltar que os árabes palestinos possuíam apego às árvores frutíferas típicas da região, como as oliveiras e as tamareiras, pois elas promoveram o sustento de famílias inteiras durante gerações. A destruição dessas árvores continuou a ser uma forma de castigo de soldados israelenses contra famílias palestinas que estavam “causando problemas”.

Os palestinos, por sua vez, procuram manter sua memória viva. Ainda que o ensino sobre história da Palestina seja controlado por Israel, e que não seja possível criar uma instituição para salvaguardar seu passado, os palestinos possuem como tradição a história oral. Muitos depoimentos da primeira geração de refugiados foram gravados em vídeo e compartilhados na internet. Ainda que as antigas vilas não existam mais, os palestinos as invocam dando o nome dessas aos seus filhos; eles também carregam consigo as chaves das casas que seus ancestrais foram obrigados a abandonar há mais de sete décadas. Tais objetos são figuras centrais nas rememorações do 15 de maio.

Com isso, compreender o que foi a Nakba e quais são suas consequências auxilia no entendimento das hostilidades que estão presentes na mídia jornalística continuamente. Com a guerra, vidas são perdidas em ambos os lados; o conflito não é quisto por judeus ou por árabes, ele possui fatores diversos, com soluções difíceis de serem acordadas. Contudo, devemos lembrar que as reivindicações palestinas não estão no anseio pela não existência de Israel, mas pelo próprio direito de existir, de retomar e relembrar seu passado para, com isso, e tendo assegurado seus direitos, construir um futuro.

 

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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