A amizade é um via de mão dupla

Certo dia, apressado como sempre, caminhava para uma dessas intermináveis reuniões em que a profissão me obriga a participar, já concentrado no que iria dizer e fazer. Eis que, de repente, uma voz conhecida interrompeu o meu errante pensamento, estancando-o. Era Lucinda, uma querida amiga de saudosas lutas sindicais, comandando a minha súbita parada. Chamava-me de “Cezinha”, como antigamente fazia.

Antes mesmo que eu retribuísse a gentileza do rejuvenescimento nominativo, cuidou de explicar que era assim que gostava de citar os seus velhos amigos, mesmo aqueles em que o tempo fez ocupar cargos formais e que poderiam, um função da mudança, exigir um tratamento mais protocolar. E foi citando outras pessoas que recebiam o mesmo tratamento, desde parlamentares, passando por membros do executivo e do judiciário. O único critério adotado era a sua amizade na época em que os conhecia.

No seu jeito espontâneo de ser, estava trazendo para o mundo real o que para muitos não passa de um utópico discurso de igualdade. Estava a dizer que as pessoas são iguais e que não devem, portanto, ser diferenciadas pelos cargos que provisoriamente exercem. Estava a demonstrar que o tratamento formal é fator de distanciamento entre os homens, fazendo-os, consciente ou inconscientemente, acreditarem que foram eternamente transmudadas nos cargos que representam, não sendo mais pessoas mortais e transeuntes das ruas da vida.

Realmente é lugar comum encontrar pessoas que mudam com o passar do tempo e o ocupar dos cargos, algumas até mandando esquecer o que fez, escreveu, disse ou prometeu construir. A história realmente tem revelado o poder modificativo dos cargos sobre várias pessoas, testemunhando a transformação de democratas em ditadores confessos e assistindo, perplexa, corruptos tendo o seu time completado por famosos baluartes da ética. Não sem razão existem ditados populares que enquadram perfeitamente esta situação, a exemplo dos famosos: “quem foi naninha”; “cuspiu no próprio prato que comeu” e “ficou besta, depois de grande”.

Encaixam-se neste perfil, dentre outros, os que sugam dos cargos públicos os prazeres que jamais gozariam se tivessem que pagar com seus recursos pessoais o deleite exigido, mesmo quando ricos o suficiente para assim comprar. Fazem parte deste grupo aqueles que passaram a incorporar em seus nomes pessoais o prenome “doutor”, sequer o despindo quando mergulham nas águas populares e democráticas do mar. São membros permanentes desse time aqueles que, independentemente da ideologia ou partido do governante momentaneamente, conseguem manter os seus cargos, conseguindo, sempre, conservar o nome de “extremamente confiantes”.

Mas o que pouco se comenta, como voluntariamente fez a minha amiga, é a mudança que também atinge os amigos daqueles que passam a ocupar uma posição mais destacada. Também são eles atingidos diretamente pela mudança, passando igualmente a mudar em relação ao amigo, exigindo um comportamento diferente daquele dado nos “velhos” tempos. Ficam sempre a observar o que o outro faz em relação a eles, mas nunca param para observar o seu próprio comportamento em relação ao amigo.  Não percebem que perdem a voluntariedade quando espontâneos, a camaradagem quando íntimos e a liberdade quando o livre-falar era a maior regra que os unia.

 O bom-dia com que sempre o saudava, o abraço que o acalentava e o telefonema que o animava nos momentos de ausência são agora substituídos pelo sempre esperar o cumprimento ou a atenção do outro. É como se o cargo do amigo o tivesse transformado em um rápido cowboy, em que deve o primeiro a sacar o afeto disputado, sob pena de ser mortalmente atingido pelo tiro da desilusão. O grande vilão será sempre o “ex-amigo”, agora também acusado de vaidoso criminoso, não obstante ter cometido o mesmo delituoso não-falar do mocinho. E de nada adianta argumentar  que realmente não o viu, o crime-de-não-falar-com-a-pessoa-que-não-viu-mas-que-por-ela-foi-vista não prescreve ou tem perdão, tampouco serve como atenuante o assumido não-falar do próprio acusador.

E preciso, portanto, encarar a amizade com mais carinho e atenção. É preciso compreender que a amizade é um caminho de via dupla, exigindo a atenção de todos os envolvidos. Afinal, se a amizade não resistir aos cargos, não era verdadeira ou sincera, era apenas uma lembrança que passou sem deixar saudade. A verdadeira amizade não muda com os cargos, reciprocamente.

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