A barba e sua liturgia

Certo dia, ainda estudante de direito, fui convidado para a festa de Nossa Senhora da Piedade, padroeira da cidade de Lagarto. Aceitei. Festa no interior sergipano era um acontecimento imperdível. Naquela época uma procissão era o apogeu de uma festa, o seu momento mais esperado. Fora  o tempo em que a dupla celeste Cosme e Damião era  mais conhecida do que os cantores Bruno e Marrone,  Santo Antonio era um pop star e as santas Conceição e Aparecida eram mais populares do que a turma da Calcinha Preta.

 

Confesso, como assumido interiorano, que sempre gostei do aspecto popular de uma procissão religiosa. Não sem razão fiquei a esperar que ela passasse. Eu e toda população de Lagarto. E ela não demorou a chegar, arrastando uma multidão de fieis, fazendo do andor a atração hoje substituída pelo trio elétrico. Como em todas as procissões, um grupo de políticos desfilava como abre-alas, postado em frente ao andor.  Aliás, sem políticos ardorosos uma procissão não seria mesmo completa, tampouco o número de pecados a serem perdoados. Ardor eleitoreiro, é bom que se registre.

 

Outra característica das procissões da época era o traje de gala de seus participantes. Cada um segundo suas posses, costumes e gostos. Não poderia ser diferente, pois o principal acontecimento da cidade exigia uma roupa apropriada e combinada com a sobriedade do ambiente. Assim, o padre usava a sua melhor beca, o político o mais alinhado terno e os paroquianos desvirginavam as roupas utilizariam pelos anos seguintes. Até mesmo os cavalos e pangarés dos fazendeiros e vaqueiros ganhavam  adornos especiais. Era mesmo um verdadeiro e plural desfile de moda campestre.

 

Lembro-me que estava trajando o mais chic dos uniformes universitários da época. Coisas de estudante da capital em visita a uma cidade do interior. Usava uma calça jeans bem surrada nas lides estudantis e uma desbotada camisa de malha branca. Na camisa uma estampa de Che Guevara e a sua famosíssima frase “hay de morrer de pé a vivir ajoelhado”. Não me recordo se estava de tamanco ou exibia um portentoso “conga”. Para quem não era nascido, “conga” era o precursor do moderno tênis e objeto de cobiça dos adolescentes.

 

Quando a procissão se aproximou, um dos políticos, reconhecendo o “grupo de estudante da capital”, veio ao nosso encontro. Era amigo do pai do estudante lagartense que havia nos convidado para a festa. Eu não o conhecia. Querendo nos provocar, curtir ou simplesmente contar vantagens para o seu público de religioso resolveu me perguntar o motivo de usarmos barbas. Barbas, embora ralas e desarrumadas, também faziam parte do nosso visual. Rapidamente respondi que era para homenagear o maior revolucionário de todos os tempos. Como se antevendo a minha resposta, ele sorriu vitorioso, olhando para a camisa de Che Guevara. Acabava de denunciar para os presentes os “ateus comunistas” que, contraditoriamente, participavam de uma procissão. E ficou a sorrir de sua esperta conclusão. Afinal, o comunista Che era o grande inspirador dos estudantes daquela época.

 

Não contava ele, entretanto, com o complemento da minha resposta. Esperei, pacientemente, que concluísse o sorriso para informar o nome do revolucionário homenageado. Disse-lhe então que a nossa barba era em homenagem a Jesus Cristo, o maior revolucionário que já pisara na terra. Não coincidentemente o líder da religião que a própria procissão reverenciava. A religião que o fazia não se sentir ateu. Ele imediatamente abriu um sorriso amarelo, sem graça, derrotado na sua conclusão.  Ele esquecera de que Cristo também usava barba. Não recordara que os apóstolos e fundadores da Igreja eram igualmente barbudos. Não se apercebera que barba era também uma referência católica. Ele e seus acompanhantes compreenderam, finalmente, que a contradição não estava conosco, mas sim com eles mesmos. A contradição era deles e de vários católicos espalhados pelo mundo.

 

É bem verdade que a barba enfeita os rostos de vários revolucionários ao longo da história, especialmente os socialistas mais conhecidos. Mas é igualmente verdadeiro que está presente na grande maioria dos personagens bíblicos, do velho ao novo testamento. Não se compreende, portanto, que o preconceito contra os socialistas tenha apagado a história dos religiosos católicos, inclusive com a conivência da própria Igreja. Não se entende, especialmente mundo católico ocidental, que a barba usada por Cristo faz suspeito de terrorista, bagunceiro ou irresponsável o homem que a porta. É mais um daqueles preconceitos absurdos que faz o homem ser apreciado ou rejeitado por sua aparência externa, pouco importando a sua existência interna.

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