Entraram no luxuoso restaurante e escolheram uma mesa do lado esquerdo, coberta com uma toalha vermelha. Um deles carregava um livro – O Capital, a bíblia de Karl Marx. O outro fumava um imenso charuto – um legítimo havana.
—- O que vamos pedir para beber? – falou o do livro.
O outro pensou.
—- Uma cachaça pura ?
—- Tá louco ? Com um calor desse ? Nem a pau!
O do charuto tornou a pensar.
—- A concepção apologética da necessidade etílica.
—- Hein?
—- A fetichização do mundo capitalista é o que conta contra.
O outro também pensou um pouco.
—- É, talvez você tenha razão. O capital é voraz. A nossa única saída é a abolição de rendas, lucros e juros. Lutaremos pela massificação e o igualitarismo do trabalho e das condições de vida. Mas o que vamos beber ? Quem sabe, uma cervejinha ?
—- Cerveja ? Não, não temos tradição de bebedores de cerveja.
—- Champanhe?
—- Nem pensar. Vão dizer que somos burgueses.
Os dois pensaram. O do livro teve uma idéia.
—- E se nada bebermos?
O outro retrucou.
—- Seria a massificação imprópria das nossas idéias.
—- Mas não pregamos a massificação?
—- Menos no bar.
—- Claro.
Tornaram a pensar.
—- É, teremos que beber alguma coisa.
—- Isso. Temos fama de bons bebedores.
Não dava mais para pensar. O maître chegou.
—- Boa noite. Os cavalheiros vão beber….
O do charuto, assim como quem não quer nada.
—- Um vinhozinho. Alemão, é claro, de 52. Da primeira safra.
—- Para mim, apenas um House of Lords, do jeito que o Churchill gostava – falou o do livro. —- Se não tiver, me conformo com um Logan, o preferido do Collor.
—- Para comer ?
Entreolharam-se.
—- Ainda não decidimos. Depois pediremos.
O maître afastou-se.
—- O que vai comer ? – perguntou, com ar de desinteressado, o do livro.
—- Bem… ainda não escolhi. E você ?
—- Eu? Bom…. estou um pouco indeciso.
Calaram-se e esperaram as bebidas serem servidas.
—- A sua será frita ou assada ? – perguntou o do livro.
—- Minha? Minha, o quê ?
—-Criancinha, é evidente.
—- Ah,…. talvez frita. E a sua?
—- Hum… com batatinhas. Não, talvez seja melhor ao molho de camarão.
—- E já servem ao molho de camarão?
—- Acredito. As relações do mundo capitalista são extremamente desenvolvimentistas.
—-Desenvolvimentistas?
—- Para trás, é lógico.
—- Ah.
Calaram-se outra vez.
—- Você não acha que é muito forte, assim de primeira, pedirmos criancinha para jantar? – falou o do charuto.
—- É a nossa tradição. Não podemos perdê-la. O que diriam os da direita, os reacionários? Seríamos alvos de gozação. Nossa identidade e ideologia são inatacáveis!
—- Calma, calma. Tudo bem. Falei por falar. Vamos pedir criancinha.
Chamaram o maître.
—- Os cavalheiros já decidiram?
—- Bem… vocês servem criancinha ?
O maître, mais de 30 anos de perguntas idiotas.
—-Claro, mas, infelizmente, as últimas foram servidas ontem, para uma turma do PSTU.
Suspiros de alívio.
—- Então traga, para começar, alcachofras recheadas – gritou o do charuto.
—- Pra mim, camarão pistola e canapé francês – falou o do livro.
—- Só?
—- Traga também melão africano, barbatana e músculo de tubarão branco, couve-flor, nabos e figos.
O maître anotou tudo.
—- E para jantar?
—- Quero lagostas e ovos de tartaruga, da Austrália – disse o do livro.
—- De Port Hediand ?
—- Não, de Canberra. Só servem se forem de Canberra.
—- O cavalheiro….
—- Pra mim, língua defumada de foca, peito de beija-flor pintado do Canadá e salada de espargos com espinafre.
—- Para sobremesa ?
—- Depois pediremos.
Foi uma senhora farra.Saíram do restaurante lá pras tantas, abraçados, tropeçando e gritando “ o povo unido jamais será vencido “ e “ abaixo o capitalismo voraz”.O do charuto entrou num imponente Mercedes 500 SL e o do livro numa Ferrari Testarossa. Partiram com os pneus cantando. Afinal, mereciam, pois estavam comemorando a maioridade e a primeira filiação política.
No PCB, o partidão.