A constitucionalidade do Exame de Ordem

O exercício profissional da advocacia é privativo dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, entidade à qual compete promover a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República.[1]

 

Pois bem, para inscrição como advogado nos quadros da Ordem é necessário que o interessado atenda a uma série de requisitos estabelecidos na Lei n° 8.906/94 (que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil), dentre os quais a aprovação em Exame de Ordem:

 

Art. 8º Para inscrição como advogado é necessário:

I – capacidade civil;

II – diploma ou certidão de graduação em direito, obtido em instituição de ensino oficialmente autorizada e credenciada;

III – título de eleitor e quitação do serviço militar, se brasileiro;

IV – aprovação em Exame de Ordem;

V – não exercer atividade incompatível com a advocacia;

VI – idoneidade moral;

VII – prestar compromisso perante o conselho. (grifou-se)

 

Essa exigência pode ser encarada como atentatória à liberdade de exercício profissional assegurada na Constituição?

 

A resposta que se impõe é negativa.

 

Observe-se o modo como a Constituição assegura, com status de direito fundamental, a liberdade de exercício profissional:

 

Art. 5° (…)

(…)

XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício, ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (grifou-se)

 

Ou seja: a Constituição assegurou a liberdade de exercício profissional, no sentido de vedar peremptoriamente ao Estado (ou aos particulares) a imposição de exercício de determinado trabalho, ofício, ou profissão, contra a vontade do indivíduo. É nesse sentido que essa norma vem sendo interpretada, inclusive tendo em vista situações ocorridas em Estados Totalitários, que se arvoram no poder de impor aos indivíduos que atividades profissionais deverão desempenhar. É o típico organicismo de Estados Totalitários, que entendem o indivíduo como mera engrenagem do poder estatal, como mera peça de um todo orgânico, à sua total e inteira disposição. A Constituição Democrática de 1988, portanto, em sentido diametralmente oposto, garante ao indivíduo o direito de livre escolha quanto à profissão que deseja seguir, quanto à vocação a que pretende dar vazão, quanto às atividades que intenta cumprir, ao seu livre arbítrio, sem interferência estatal ou de terceiros.[2]

 

Podemos conferir na literatura jurídica especializada que esse sempre foi o entendimento corrente acerca da norma do inciso XIII do Art. 5° da CF/88:

 

PROFESSOR JOSÉ AFONSO DA SILVA

O dispositivo confere liberdade de escolha de trabalho, de ofício e de profissão, de acordo com as propensões de cada pessoa e na medida em que a sorte e o esforço próprio possam romper as barreiras que se antepõem à maioria do povo. Confere, igualmente, a liberdade de exercer o que fora escolhido, no sentido apenas de que o Poder Público não pode constranger a escolher e a exercer outro.

Quanto a saber se há ou não condições de aquisição de ofício ou de profissão escolhida, não é tema que preocupe o enunciado formal da norma. Como todo direito de liberdade individual, a regra se limita a conferi-lo sem se importar com as condições materiais de sua efetividade. Equivale a dizer, como a experiência o mostra, que, na prática, a liberdade reconhecida não se verifica em relação à maioria das pessoas, que não têm condições de escolher o trabalho, o ofício ou a profissão, sendo mesmo obrigadas a fazer o que nem sempre lhes apetece sob pena de não ter o que comer. As épocas de recessão são pródigas em demonstrar o quanto o texto constitucional em exame é formal. Não quer isso dizer que seja inútil. É necessários que exista e tem sua função importante, mormente se preenchido o vazio com medidas transformadoras da realidade econômico-social vigente. O que é realmente necessário é dar conteúdo a essa liberdade, estabelecendo condições materiais e efetivas de acessibilidade ao trabalho, ao ofício e à profissão.

(…)

Como o princípio é o da liberdade, a eficácia e aplicabilidade da norma é ampla, quando não exista lei que estatua condições ou qualificação especiais para o exercício do ofício ou profissão ou acessibilidade à função pública. Vale dizer, não são as leis mencionadas que dão eficácia e aplicabilidade à norma. Não se trata de direito legal, direito decorrente da lei mencionada, mas de direito constitucional, direito que deriva diretamente do dispositivo constitucional. A lei referida não cria o direito, nem atribui eficácia à norma. Ao contrário, ela importa em conter essa eficácia e aplicabilidade, trazendo norma de restrição destas. [3](grifou-se)

 

 

PROFESSORES LUIZ ALBERTO DAVID ARAÚJO E VIDAL SERRANO

A finalidade do dispositivo é indisfarçável: proibir o Poder Público de criar normas ou critérios que levem o indivíduo a exercer ofício ou profissão em desacordo com sua vontade.

Como se vê, cuida-se de um típico direito de liberdade do cidadão. A norma, fixando uma limitação da atividade do Estado, demarca um território impenetrável da vida individual e, dessa forma, fixa o direito à autodeterminação do indivíduo na escolha de sua profissão.

O dispositivo, porém, foi erigido sob os moldes de uma regra de eficácia contida, permitindo que lei infraconstitucional venha a limitá-la, criando requisitos e qualificações para o exercício de determinadas profissões. Logo, enquanto não existir lei acerca dessa ou daquela profissão, a permissão constitucional tem alcance amplo. Entretanto, caso seja editada uma lei regulamentando determinada profissão, o indivíduo que queira exercer tal atividade fica adstrito à observância das qualificações profissionais que o diploma vier a estabelecer. [4](grifou-se)

 

 

 

PROFESSOR WALBER DE MOURA AGRA

Conclui-se que o cidadão pode escolher qualquer profissão, desde que atendidas as qualificações necessárias ao exercício dela, como, no caso dos advogados, a exigência, para o exercício da profissão, do diploma em curso de direito reconhecido pelo Ministério da Educação e a aprovação no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil.

Essa é uma norma de eficácia contida porque uma norma infraconstitucional poderá criar requisitos para o exercício da liberdade profissional.

O princípio da liberdade profissional é considerado como um direito individual, de primeira dimensão, que se concretiza com a simples abstenção do Estado em criar empecilhos para os cidadãos escolherem a profissão que mais se adequar a suas aptidões.

O direito de liberdade profissional encontra respaldo no princípio da livre iniciativa, que é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Um país que adota o regime capitalista como modelo produtivo não pode impedir o acesso da população à carreira profissional de sua escolha. O que pode ocorrer é que haja incentivo a algumas profissões em que exista carência, como incentivar a formação de médicos para trabalhar no norte do País.[5]

 

Todavia, apesar de a norma constitucional assegurar essa livre escolha, essa não-interferência estatal, a mesma norma (e aí levando em conta o interesse público, o interesse geral da sociedade) admite que a legislação infraconstitucional imponha qualificações profissionais que devem ser atendidas por quem queira exercer determinado trabalho, ofício ou profissão. Assim, o que a Constituição expressamente admite é que a sociedade, por decisão democrática direta ou de seus representantes, aprove, por meio de lei, exigências que devem ser atendidas para o exercício de certas atividades.

 

O que se aponta é que essas exigências legais para o exercício de profissões não podem extravasar certos limites de razoabilidade, sob pena de esvaziar abusivamente a liberdade de exercício profissional. O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou nos seguintes termos: A reserva legal estabelecida pelo art. 5º, XIII, não confere ao legislador o poder de restringir o exercício da liberdade a ponto de atingir o seu próprio núcleo essencial (…) enquanto princípio expressamente consagrado na Constituição ou enquanto postulado constitucional imanente, o princípio da proteção do núcleo essencial destina-se a evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental decorrente de restrições descabidas, desmesuradas ou desproporcionais” (voto do Ministro Gilmar Mendes no RE n° 511961, no qual o STF declarou que a exigência de diploma de curso superior de jornalismo, oficial ou reconhecido, registrado no Ministério da Educação ou em instituição credenciada, como condição para o exercício da profissão de jornalista não é compatível com a Constituição – confira a íntegra: http://media.folha.uol.com.br/brasil/2009/06/17/diploma_jornalismo.pdf).

 

Enfim, o teste da razoabilidade e da proporcionalidade das exigências de qualificação profissional como condição para o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão tem a finalidade de evitar abusos do legislador que comprometam a própria essência da liberdade constitucionalmente assegurada. E que, detectado que as exigências legais estabelecidas para o exercício profissional não são razoáveis, impõe-se a sua declaração de inconstitucionalidade.

 

Nesse sentido, de acordo com registros doutrinários dos Professores Eros Grau (ex-Ministro do STF) e Geraldo Ataliba, o citado voto do Ministro Gilmar Mendes aponta que “as qualificações profissionais de que trata o art. 5º, inciso XIII, da Constituição, somente podem ser exigidas, pela lei, daquelas profissões que, de alguma maneira, podem trazer perigo de dano à coletividade ou prejuízos diretos a direitos de terceiros, sem culpa das vítimas, tais como a medicina e demais profissões ligadas à área de saúde, a engenharia, a advocacia e a magistratura, dentre outras várias”.

 

Fácil concluir que o exercício desregulado da advocacia tem, sim, potencial de causar sérios e incomensuráveis prejuízos à coletividade e a direitos de terceiros.

 

A advocacia é essencial à administração da justiça. É exatamente porque a advocacia é indispensável à administração da justiça que a Lei n° 8.906/94 define que, no seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social. A função social do advogado é notória. O advogado é defensor das liberdades, protetor da cidadania, guardião da democracia, instrumento fundamental de acesso efetivo à justiça.

 

É evidente que a formação em curso superior de bacharelado em direito acompanhada de aprovação em Exame de Ordem, por si sós, não tem o condão de evitar, por completo, a ocorrência de desvios de condutas, abusos profissionais e imperícias. Do contrário, não haveria defesas jurídicas mal formuladas e práticas advocatícias eticamente reprováveis, embora cometidos por profissionais com a devida formação específica e aprovados em Exame de Ordem. Tais erros, embora minoritários, acontecem, e devem ser rigorosamente coibidos. Não se pode negar, contudo, que a exigência de formação universitária em bacharelado acompanhada de aprovação em rigoroso Exame de Ordem diminui sensivelmente as potencialidades de danos, de erros, de atitudes profissionais antiéticas, diminuição essa em claro benefício do interesse público.

 

Noutras palavras: o exercício da advocacia por quem não preencha os requisitos que a sociedade estabeleceu, mediante democrática deliberação manifestada em lei (dentre eles a aprovação em Exame de Ordem), tem potencial de causar danos à vida, à saúde, à liberdade e ao patrimônio das pessoas. E é por isso mesmo que a sociedade impõe essas exigências: em nome do interesse público, de modo razoável, tudo conforme expressamente preconizado e autorizado pela Constituição. É a compatibilização da liberdade de exercício profissional com a proteção do interesse público de garantia dos direitos à vida, à saúde, à liberdade, ao patrimônio, à dignidade.



[1] Lei n° 8.906/94, que Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)”:

(…)

Art. 3º O exercício da atividade de advocacia no território brasileiro e a denominação de advogado são privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

(…)

 

Art. 44. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade:

(…)

II – promover, com exclusividade, a representação, a defesa, a seleção e a disciplina dos advogados em toda a República Federativa do Brasil.

 

[2] Claro que, numa sociedade capitalista, ainda que o Estado não interfira, essa liberdade de escolha não será tão ampla, tendo em vista as injunções de mercado.

[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros,  2005, p. 257-258 .

[4] ARAUJO, Luiz Alberto David Araujo e NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, .p. 149-150.

[5] AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 125.

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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