A PGR e as Fundações de Saúde

Demorou. Mas, finalmente, a Procuradoria-Geral da República emitiu o seu parecer na Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4197 (proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, atendendo requerimento do Conselho Seccional, na qual se pede que o STF declare a inconstitucionalidade das leis estaduais sergipanas que autorizaram a instituição das fundações estatais de direito privado para gestão da saúde pública em Sergipe). Os autos do processo foram remetidos a exame da PGR em 18/03/2009, e somente em 08/02/2011 foram devolvido ao Relator, Ministro Joaquim Barbosa, com parecer. Essa demora chegou a ser objeto de crítica aqui neste mesmo espaço da Infonet.[1]

 

Contudo, após o conhecimento do teor do parecer, pode-se dizer que, em certa medida, valeu a pena esperar. O parecer da Procuradoria-Geral da República, da lavra da Vice-Procuradora-Geral da República, Deborah Duprat, aprovado pelo Procurador-Geral, Roberto Gurgel, é suficientemente denso e consistente, examinando minuciosamente a complexa e delicada controvérsia jurídica.

 

Quando a OAB/SE apreciou o requerimento formulado por diversas entidades de trabalhadores e profissionais de saúde, capitaneados pela Central Única dos Trabalhadores, essa apreciação foi efetuada à luz da Constituição Federal, em parecer da minha lavra, aprovado pelos demais pares do Conselho Seccional da OAB/SE, em novembro de 2008.

 

No parecer, a conclusão da OAB/SE foi pela inconstitucionalidade das Leis Estaduais que autorizaram a instituição das Fundações Estatais de Direito Privado para cuidar da saúde pública sergipana, com encaminhamento de requerimento ao Conselho Federal da OAB, a fim de que fosse proposta, no STF, ação direta de inconstitucionalidade.

 

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil não apenas aprovou o parecer da OAB/SE como, revelando a sua preocupação com a eventual adoção de modelo legal inconstitucional semelhante em outros estados, determinou que fossem oficiadas todas as seccionais da OAB para que informassem a existência, em seus estados, de leis semelhantes, para que também fossem questionadas no STF.

 

Pois bem, quais foram, em síntese, os fundamentos jurídicos apresentados pela OAB para a inconstitucionalidade das leis estaduais sergipanas que autorizaram a criação de Fundações Estatais de Direito Privado para gerenciar a saúde pública em Sergipe? Foram basicamente três: a) a ausência de lei complementar regulamentadora da Constituição Federal, definidora das áreas de atuação das fundações públicas; b) a obrigatoriedade constitucional de que a gestão pública de serviços essenciais, como o da saúde pública, seja efetuada em regime de direito público e, portanto, a inadequação jurídica de que a gestão da saúde pública seja efetuada por fundações de natureza de direito privado; c) a inconstitucionalidade de adoção do regime jurídico da CLT para os trabalhadores das mencionadas fundações.[2]

 

Pois bem, o que diz a Procuradoria-Geral da República, em seu consistente parecer?

 

Sobre a necessidade de lei complementar para definição das áreas de atuação das fundações públicas:

 

De fato, o inciso XIX do art. 37 não deixa dúvidas sobre a necessidade de se ter uma lei complementar que defina as áreas em que as fundações públicas podem atuar, lei complementar esta que deve logicamente preceder o ato de autorização de criação dessas fundações.

17.  Tal lei complementar deve ser federal.

18.  Primeiro, porque a Constituição, quando quis remeter determinada matéria à lei complementar estadual, o fez expressamente, tal como se dá em seus arts. 25, § 3º, e 128, § 5º. 

19. Segundo, porque todo o art. 37 é um conjunto de normas que disciplina a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Em face de seu caráter nitidamente nacional, não é razoável concluir que a lei complementar que definirá as áreas de atuação das fundações poderá ser estadual, distrital ou municipal.

20.  Em reforço a esse raciocínio, é interessante notar que todas as leis a que são remetidas determinadas matérias, no âmbito desse art. 37, são federais. É o que se dá nas hipóteses de seus incisos I, II, V, VII, VIII, IX, XVIII, XXI, §§ 3º, 4º, 5º, 7º e 8º.

21.  Portanto, se o objetivo do art. 37 é estabelecer uma certa uniformidade nas questões centrais de administração pública, todas as leis que vêm cumprir tal propósito, em acréscimo às estipulações constitucionais, devem ser, logicamente, de caráter nacional.

22.  Tanto assim o é que foi apresentado, para apreciação do Congresso Nacional, o projeto de lei complementar 92/2007, que estabelece as áreas de atuação para toda e qualquer fundação instituída pelo poder público. (grifou-se).

 

E como a PGR se manifesta sobre o argumento apresentado pelo Estado de Sergipe, segundo o qual teria sido recepcionado como Lei Complementar, no ponto, o Decreto-Lei n° 200, que definiria a área de atuação das fundações públicas? Confira:

 

Já houvesse disciplina suficiente para a matéria, certamente não estaria em tramitação, ainda nos dias de hoje, o referido projeto de lei complementar.

24.  De mais a mais, o DL 200 só conta, em seu art. 5º, IV, com a definição do que seja fundação pública, sendo absolutamente silente quanto às atividades a que pode se dedicar.

25.  Considerando, portanto, que ainda não há lei complementar federal que defina as áreas de atuação das fundações públicas, são inconstitucionais as leis estaduais que autorizam a instituição dessas fundações. Aliás, mesmo que se admitisse, a título de argumentação, que a lei complementar exigida fosse estadual, permaneceria o vício de forma, uma vez que o Estado de Sergipe não editou tal norma, conforme apontado pelo requerente na peça vestibular. (grifou-se).

 

 

Sobre o regime jurídico por meio do qual deve ocorrer a gestão de serviços públicos essenciais, como a saúde, diz a PGR:

 

A assistência à saúde é serviço público, não o descaracterizando o fato de a Constituição, no art. 199, autorizar a participação da iniciativa privada. Esta é episódica, lateral, que não se confunde e não interfere com o modelo de prestação do SUS.

34.  Firmado se tratar de um serviço estatal, há ainda um outro dado que desautoriza o regime de direito privado na hipótese. É que os recursos que financiarão as atividades de saúde pública a serem desenvolvidas pelas fundações cuja criação foi autorizada são de natureza orçamentária. Consta do art. 17 de cada uma das leis impugnadas que “o Estado fará consignar, anualmente, no orçamento do Fundo Estadual de Saúde – FES, vinculado à Secretaria de Estado da Saúde – SES, de forma destacada, os recursos para pagamento dos serviços que vier a contratar com a Fundação [..] mediante contrato estatal de serviços”.

35.  De resto, integram a administração pública indireta do Estado de Sergipe (art. 1º) e atuam sob supervisão da Secretaria de Estado da Saúde (art. 22).

36.  Somam-se, assim, todos os requisitos que o STF tem por caracterizadores de uma fundação de direito público.

37.  A imputação de personalidade privada a tais entidades constitui violação a todo o conjunto de normas integrantes do art. 37 da CR, vocacionadas a organizar a prestação do serviço público, de modo a que realize os valores fundamentais da sociedade brasileira.

 

Finalmente, confira o que diz a PGR sobre ter sido adotado o regime jurídico da CLT para os trabalhadores das fundações estatais de saúde:

 

O só fato de se qualificar como entidade de direito público é suficiente para a incidência do regime estatutário no que diz respeito a seus servidores.

39.  É que, na ADI 2.135, o STF deferiu a medida cautelar suspendendo a eficácia do art. 39, caput, na redação que lhe foi dada pela EC 19/98.

40.  A principal alteração introduzida pela referida emenda constitucional, no caput do art. 39, foi o fim da obrigatoriedade da manutenção do regime jurídico único, no âmbito da administração direta, autárquica e fundacional, o que permitia a contratação de servidores pelo regime da CLT. Já agora, com a suspensão da eficácia da alteração introduzida no art. 39, caput, retorna-se ao modelo anterior, do regime jurídico único.

41.  Portanto, a previsão das leis estaduais impugnadas, de contratação de servidores pela CLT, está em descompasso com o atual parâmetro constitucional, em face da decisão proferida naquela ADI.

 

Como bem se percebe, a Procuradoria-Geral da República apresentou consistente manifestação jurídica que coincide com a fundamentação apresentada pela Ordem dos Advogados do Brasil.

 

É evidente que o parecer não é, ainda, decisão. Trata-se de uma opinião, que é examinada com atenção pelo STF, mas que não vincula a sua decisão final. Todavia, também é evidente que um parecer da PGR, sobretudo quando elaborado com tanta consistência jurídica e que recorre a diversos precedentes do próprio STF, tem peso e influência no julgamento da matéria.

 

Agora, a pelota está com o Ministro Joaquim Barbosa, relator da ADI 4197, que vai examinar o processo e, após, pedir a sua inclusão em pauta de julgamento do Supremo Tribunal Federal.



[1] https://.infonet.com.br/mauriciomonteiro/ler.asp?id=94772&titulo=mauriciomonteiro

[2] Todos os fundamentos jurídicos do entendimento da OAB pela inconstitucionalidade podem ser acessados no seguinte link:

 

http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2662680

 

O texto acima se trata da opinião do autor e não representa o pensamento do Portal Infonet.
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