O fantasma da ditadura nos espreita. Talvez porque a exceção tenha acabado há pouco, 23 anos apenas, talvez porque seja bom mesmo não se esquecer do passado, mesmo que dorido. E sempre tem um pateta cínico a remexer nos porões para tentar tirar vantagem da desgraça alheia, ou para se vangloriar daquilo que efetivamente não fez, ou por absoluta ignorância mesmo.
Na quarta-feira, durante o depoimento da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, na Comissão de Infra-Estrutura do Senado, o parlapatão potiguar José Agripino Maia, dito “democrata”, cometeu a estultice de pilheriar da tortura. Disse que como Dilma já havia admitido numa entrevista que mentiu, sob tortura, poderia mentir de novo.
A insensibilidade do senador — que reforçou a galhofada afirmando que também lutou contra a ditadura, quando, no começo dos anos 80, deixou o PDS para entrar no PFL e apoiar a candidatura de Tancredo Neves (PMDB) no Colégio Eleitoral — foi exposta e devidamente horizontalizada com dignidade pela ex-militante clandestina da VAR-Palmares, presa e torturada pela Operação Bandeirante mal saindo da puberdade.
“Eu tinha 19 anos. Eu fiquei três anos na cadeia. E eu fui barbaramente torturada, senador. Qualquer pessoa que ousar dizer a verdade para interrogador compromete a vida dos seus iguais”, respondeu Dilma.
“Eu me orgulho muito de ter mentido, senador. Porque mentir na tortura não é fácil. Salvei companheiros da tortura e da morte. Uma ditadura policiada é a impossibilidade de se dizer a verdade em qualquer circunstância. Não é possível supor que se dialogue no choque elétrico, no pau-de-arara. Na tortura, quem tem coragem e dignidade fala mentira. Isso faz íntegra a minha biografia, que eu tenho imenso orgulho”, disse, não esquecendo de colocar as coisas nos devidos lugares: “Qualquer comparação entre a ditadura militar e a democracia brasileira só pode partir de quem não dá valor à democracia. E eu acredito, senador, que nós estávamos em momentos diferentes da nossa vida em 70”.
TRECHOS DE UMA ENTREVISTA FEITA EM 2003 e publicada pela Folha de S.Paulo em 2005 foram usados pelo Agripino para atacar Dilma Rousseff. Presa em 16 de janeiro de 1970, ela mereceu, do procurador militar que a denunciou, os epítetos de “Joana D’Arc da subversão”, “papisa da subversão”, “criminosa política” e “figura feminina de expressão tristemente notável”. Só saiu da cadeia no final de 1973. Seguem trechos da entrevista:
“Pergunta – Que lembranças a sra. guardou dos tempos de cadeia?
Dilma Rousseff – A prisão é uma coisa em que a gente se encontra com os limites da gente. É isso que às vezes é muito duro. Nos depoimentos, a gente mentia feito doido. Mentia muito, mas muito.
Pergunta – Como era essa história de mentir diante da tortura?
Dilma – A gente tinha que fazer uma moldura e só se lembrar da moldura, da história que se inventava, e não saía disso. Tinha que ter uma história. Na relação do torturador com o torturado a única coisa que não pode acontecer é você falar ‘não falo’. Se você falar ‘não falo’, dali a cinco minutos você pode ser obrigado a falar, porque eles sabem que você tem algo a dizer. Se você falar ‘não falo’, você diz pra eles o seguinte: ‘Eu sei o que você quer saber e não te direi’. Aí você entrega a arma pra ele te torturar e te
perguntar. Sua história não pode ser ‘não falo’. Tem que ser uma história e dali para frente você não sabe mais nada, não pode saber.
Pergunta – Quais são as cenas que estão vindo na sua cabeça, agora?
Dilma – Eu lembro de chegar na Operação Bandeirante, presa, no início de 70. Era aquele negócio meio terreno baldio, não tinha nem muro, direito. Eu entrei no pátio da Operação Bandeirante e começaram a gritar ‘mata!’, ‘tira a roupa’, ‘terrorista’, ‘filha da puta’, ‘deve ter matado gente’. E lembro também perfeitamente que me botaram numa cela. Muito estranho. Uma porção de mulheres. Tinha uma menina grávida que perguntou meu nome. Eu dei meu nome verdadeiro. Ela disse: ‘Xi, você está ferrada’. Foi o meu primeiro contato com o esperar. A pior coisa que tem na tortura é esperar, esperar para apanhar. Eu senti ali que a barra era pesada. E foi. Também estou lembrando muito bem do chão do banheiro, do azulejo branco. Porque vai formando crosta de sangue, sujeira, você fica com um cheiro…
Pergunta – Dá pra relembrar?
Dilma – Mandaram eu tirar a roupa. Eu não tirei, porque a primeira reação é não tirar, pô. Eles me arrancaram a parte de cima e me botaram com o resto no pau-de-arara. Aí começou a prender a circulação. Um outro xingou não sei quem, aí me tiraram a roupa toda. Daí depois me botaram outra vez.
Pergunta – Com choques nas partes genitais, como acontecia?
Dilma – Não. Isso não fizeram. Mas fizeram choque, muito choque, mas muito choque. Eu lembro, nos primeiros dias, que eu tinha uma exaustão física, que eu queria desmaiar, não agüentava mais tanto choque. Eu comecei a ter hemorragia.
Pergunta – Onde eram esses choques?
Dilma – Em tudo quanto é lugar. Nos pés, nas mãos, na parte interna das coxas, nas orelhas. Na cabeça, é um horror. No bico do seio. Botavam uma coisa assim, no bico do seio, era uma coisa que prendia, segurava. Aí cansavam de fazer isso, porque tinha que ter um envoltório, pra enrolar, e largava. Aí você se urina, você se caga todo, você…”
UMA COINCIDÊNCIA E UMA CONTRADIÇÃO: no dia 23 de abril passado — poucos dias antes de Agripino sublimar Dilma —, o presidente Lula elogiou um dos generais a quem a esquerda brasileira mais se opôs no período da ditadura: o ex-presidente Emílio Garrastazu Médici. Inimigo de todas as instituições ligadas aos Direitos Humanos no país, acusado de comandar os anos negros dos governos militares — de 1969 a 1974, período em que mais se torturou no Brasil — Médici foi “absolvido” por Lula por ter criado a Embrapa e a Itaipu Binacional.
Disse o presidente que o elogio foi uma demonstração de que cada um tem coisas boas para oferecer. “Nós não poderemos ficar julgando eternamente as pessoas por um gesto, ou dois gestos, sem compreender os outros gestos que as pessoas fizeram, que permitiram que o Brasil encontrasse o seu rumo”, destacou o presidente. Talvez um desses “poucos” gestos tenha sido a tortura a que muitos tenham sido submetidos, inclusive Dilma Rousseff. Ela própria classificou assim o período Médici: “É o prende, prende, mata, mata”.
O GESTO DE CONDESCENDÊNCIA DE LULA chama mais atenção porque ele também foi vítima da ditadura. Quando líder sindical, em 1980, foi preso por agentes do Dops, mas sua trajetória começou a ser acompanhada por relatórios quinzenais a partir de 1969, quando foi detido fazendo panfletagem. O Dops acumulou 107 fichas em seu nome e ele era acusado de pretender aumentar a “consciência revolucionária dos trabalhadores”.
Depois, em 2001, como presidente de honra do PT, para atacar o presidente Fernando Henrique Cardoso, a quem acusava de conivência com a corrupção, o comparou a quem? A Emílio Médici e Ernesto Geisel.
Para o mal ou para o bem, da direita ou da esquerda, são exemplos de quanto os nossos políticos falam bobagens.