Os brasileiros testemunharam, no dia 05 de outubro de 1988, um dos vários gestos do deputado federal Ulisses Guimarães. Todos lembram quando ele, na condição de Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, levantou o livro-texto que acabara de assinar e declarou aprovada a “Constituição Cidadã”. O Brasil percebeu, claramente, que a voz do velho guerreiro estava visivelmente emocionada, apesar de sua vasta experiência política e dos embates democráticos que travou no parlamento brasileiro.
E não era sem razão a emoção do timoneiro do PMDB, pois ele acreditava que a Constituição Federal, recém promulgada, iria enterrar definitivamente o entulho autoritário imposto ao Brasil durante a ditadura militar. A partir do dia 05 de outubro de 1988, pensava-se na época, o Estado seria controlado pelo cidadão, não existiria mais abuso de poder, desvio de verbas públicas e, principalmente, que todos teriam o direito de defesa amplamente assegurado. Em resumo: a Constituição seria o selo de garantia de um Brasil democrático e preocupado com os direitos dos cidadãos.
Buscando tornar real este ambicioso querer, cuidou-se de valorizar a advocacia pública, incumbindo-a de defender o Estado e o cidadão mais necessitado. Sabiamente, a Constituição Federal criou duas estruturas autônomas e igualmente organizadas para cada uma das atividades, mesmo porque Estado e cidadão poderiam estar em campos antagônicos. Ambas, entretanto, com a mesma importância constitucional, até porque o ar respirado no ambiente constituinte era o de reconhecer o papel primordial da cidadania, até então peça secundária no cenário político brasileiro.
Assim nasceu a idéia da conceituação e capacitação técnica da nova advocacia pública. A defesa do Estado, imprescindível para evitar o abuso dos governantes, combater os amantes da coisa pública e proteger o erário dos olhares gananciosos caberia à Advocacia Pública no âmbito federal e às Procuradorias no campo estadual e municipal. A defesa do cidadão mais necessitado, fundamental para consolidação da Justiça, seria de competência da Defensoria Pública, federal ou estadual.
O avançar do tempo, infelizmente, fez desmoronar o sonho do constituinte, pois, embora mudada a legislação, não se consegui alterar a mentalidade autoritária dos encarregados em tornar efetiva a ambição constitucional. Limitou-se apenas da organização e estruturação do ramo da advocacia pública encarregado de defender o Estado, ainda assim na sua visão mais equivocada e prejudicial ao cidadão. É que, longe de priorizar as ações judiciais destinadas à recuperação das verbas públicas desviadas e combater duramente os corruptos, “confundiram” a defesa do Estado com a prática abusiva de recursos protelatórios e invenções de teses que tornam os processos judiciais infindáveis.
No caminho oposto, as defensorias públicas permanecem abandonadas, conservando intacta a carcomida concepção de que pobre não merece defesa competente ou a proteção do Estado. A defensoria pública federal, hibernada por vários e incontáveis anos, agora é que começa a sair da toca e engatinhar os primeiros passos. Já as defensorias estaduais funcionam como atividade secundária do Estado, geralmente em prédios improvisados e sem qualquer estrutura mínima de atendimento. Aliás, sequer existe ou se ouviu falar em defensor público nos Estados de São Paulo e Santa Catarina, assim como na maioria dos municípios brasileiros.
E para confirmar esta compreensão equivocada, os advogados dos cidadãos recebem salários absurdamente inferiores aos salários dos advogados do Estado, fazendo-se uma distinção incompreensível entre os membros da própria advocacia pública. Não sem razão os defensores públicos estão exigindo melhores condições de trabalho, tratamento digno e remuneração igual para todos os advogados públicos. Em Sergipe, por exemplo, acaba de ser negado aos advogados do cidadão o mesmo reajuste salarial concedido aos advogados do Estado, não obstante estes já receberem remunerações bastante superiores. E o que é igualmente grave, aqui e alhures os defensores públicos não conseguem convencer os governantes da importância de apresentar a Justiça aos cidadãos brasileiros.
É preciso, urgentemente, acabar com esta lógica perversa e assumidamente inconstitucional. A advocacia pública, qualquer dela, é fundamental para o Brasil provar o gostoso sabor do Estado Democrático de Direito. Uma não pode ser melhor que a outra, assim como o Estado não é melhor que o cidadão. Aliás, a razão de ser do Estado e da advocacia pública é exatamente a de proteger o próprio cidadão.